Enquanto a fumaça se esvai

Levantou-se do sofá em câmera lenta, os olhos ardidos devido a televisão. Maldita hipermetropia, resmungou secando as lágrimas. Lembrou-se dos óculos guardados no fundo da gaveta; nunca os usava, ora por esquecimento, ora por teimosia. Não havia chorado de emoção, era só a hipermetropia, confirmou para si mesmo.

Não era dado a emoções, mas todos amigos que o acompanhavam a uma sessão de cinema passavam a pensar o contrário: Sempre na saída do filme, se deparavam com a inusitada cena de Tiago com os olhos repletos de lágrimas; ele esfregava os olhos com o dorso das mãos e sempre explicava, inutilmente, sobre seu problema ocular. Ninguém acreditava e ele sabia, mesmo crendo não admitiriam, afinal, o fato sempre rendia ótimas risadas nas noites de sextas-feiras, petiscos, cervejas e amigos.

Achou estranho o fato de levantar-se para desligar a televisão, ainda não havia se acostumado com a falta de controle remoto. Semana que vem compraria um novo, pensou e depois sorriu de canto, refletindo a mentira que acabara de pensar. Estava economizando cada centavo, sabia que não compraria o controle tão cedo.

Acendeu um cigarro, e foi até a janela da sala, e pensou, e fumou. Mais pensou que fumou, esquecendo-se por vezes do cigarro entre os dedos, e o vento o fumava por ele. Olhou para a fumaça e lembrou-se do vizinho do andar de baixo. Todo fim de tarde, Tiago ia até a janela, gostava de observar as formas da fumaça mais densa do cigarro do vizinho, elas iam subindo em maior quantidade, se desfazendo enquanto levadas pelo vento até se esvairem completamente. Gostava também do característico cheiro forte de mato queimado. Achava divertido ter um vizinho que fizese algo ilícito, de alguma forma isso despertava nele uma grande admiração - resquícios de rebeldia.

Mas já não era rebelde, não podia sê-lo, tinha a caminho um filho e uma esposa. Essa realidade sempre o pegava de surpresa. Se perguntava quando se acostumaria com a idéia de ser pai e se casar, exatamente nesta ordem.

Olhou para a estante com a foto de Cecília e sua barriga. Mais barriga que Cecília, julgou sorrindo e tomou-a nas mãos. Quando soube da gravidez, insistiu que ela se mudasse para seu apartamento. Ela disse que sim, com o porém de antes se casarem. Para ele, casar-se na Igreja não passava de tolice, ao menos nisso tentava acreditar. Era mais fácil lidar com o fato de não ver sentido na tradição matrimonial que admitir seu medo de compromisso.

Meses depois, superado tal medo, pediu-a em casamento. Ela aceitou com o porém de se casarem após o nascimento do bebê. Ele argumentou está cansado de poréns, ela planteou não desejar subir ao altar com uma barriga imensa. Ele insistiu que era injusto não poder acompanhar diariamente a gestação do filho. Ela afirmou ser injusto contrariar uma grávida. Caso encerrado.

Notou que o cigarro já estava no filtro, devolveu a foto à estante, tirou do bolso sua carteira, da carteira outro cigarro e o acendeu. Dessa vez foi fumando mais e pensando menos, saboreando cada trago calmamente, como se saboreia, passo-a-passo, os últimos minutos de uma tarde domingo compartilhada com alguém especial. Seu último cigarro fumado na cumplicidade do lar, pensou. Depois de casado e com filho, não mais teria tal privilégio.

Mariana Ribeiro
Enviado por Mariana Ribeiro em 07/05/2009
Reeditado em 25/02/2013
Código do texto: T1580104
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