Um Degrau a Mais: Quem Foi o Sacana?

Mas quem foi o sacana que veio aqui deixar um degrau a mais, catano? Ora isto, hein? Já uma pessoa não pode chegar a casa ao fim da noite em paz e tranquilidade que tem de esbarrar com os cornos na porta. Que é foi ó avozinho, nunca viu? Chiu o quê? Estamos num país livre ou que raio é isto. Ainda outro dia andavas na calçada de cravo encarnado ao peito e agora mandas-me calar? Eu não sou mulher que se mande calar, velhote de um raio. Também tu, ó flausina? Era só o que me faltava, uma reunião de vizinhos gaiteiros às quatro da madrugada. Só cá falta o passarinho a cantar. Ide-vos deitar, cambada. Nunca viram uma mulher no chão? Eu já vou, já vou! Puta que pariu aos moradores e seus periquitos sarnentos. Queriam saber da minha vida, não era? Manguito p’ra todos! Não saberão nada. Não me verão chorar pelas esquinas das ruas, não. A minha história é a minha vida e é só minha e de mais ninguém. À merda, seus idiotas! Sabem lá o que é passar um mau bocado. Pensam que passar mal é faltar a luz quando estão a ver o Benfica a marcar penalty, ter catarro, azia ou gases. Santa ignorância! Quem me dera a mim a vossa doce inconsciência e alienação.

O que eu gostava mesmo de saber, talvez vosselências me possam obsequiar com a colaboração do vosso testemunho, já que tudo observais, é quem foi o palonço que veio aqui colocar um degrau a mais na minha escada de entrada!

Não? Ninguém viu? Querem que eu acredite? Não vou deixar dormir ninguém enquanto não se chibarem! Puta que pariu, sacanas do caraças. Estás a rir? Anda cá a baixo que eu já de dou o riso. Ai é feio uma mulher bêbeda? Se fosse um homem davas-me licença, não? Era só o que me faltava. Piolhosos de um raio. E eu lá preciso da vossa aprovação para alguma coisa? Bardamerda para todos estes filhos de um cabaz de putas!

Pronto, lá se foi o jantar. Também não estava cá a fazer grande coisa. Tomara que tudo o que fermenta e apodrece pudesse ser expelido do organismo com a mesma facilidade. Tudo o que nos consome e corrói o corpo e a alma. A tal ponto de já não termos certeza de termos alma. E corpo mais valera que não tivéssemos tendo em conta os achaques que o vão carcomendo.

Agora falando aqui só para nós, não adianta muito a gente queixar-se. Já se esteve pior, não foi? Dantes a crise era só nossa. Agora parece que se generalizou. Por isso não estamos sós no mundo. Estamos apenas sós. E o que importa? Nada. Nem se está tão mal aqui sentada à soleira da porta. Os dias aqueceram e nem sequer faz vento. Começa a ser um hábito ter esta espécie de diálogo interior. Uma conversa de mim para comigo. Interessante. Não deixa de ter mais interesse do que falar com algum pacóvio qualquer como o que falava da pesca do Atum, naquele bar. Quero lá eu saber das variedades do Atum. Do Gaiado e do Patudo. Tretas. É tudo atum. Marcha tudo da mesma forma. E é bem bom petisco.

Parece que estou com fome. O pequeno-almoço vinha mesmo a calhar. Vou-vos deixar em paz seus esqueletos mumificados e bafientos. Ide fazer ó-ó nas vossas alcovas peçonhentas, ide. Cabrões duma figa!

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 08/05/2009
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