UM DIA EM LILLIPUT

UM DIA EM LILLIPUT

"Subindo a Ladeira eu senti

a maior desilusão...

abrindo a porta

do meu barracão

não encontrei

a dona do meu coração".

(do pagodeiro "JORGE BEN" - 1973,

Bloco Carnav. Unidos da Vila Rica)

Há fatos que não se esquece na Vida, momentos únicos, especiais, segundos fantásticos de assombro/surpresa/alegria, medo ou mesmo dor, que disso não podemos escapar.

E se o tempo de cada um na Terra pode vir a ser de diária (ou extemporânea) desilusão, nos sobra a todos várias ocasiões dignas de registro e recordação, lembrança viva nas memórias senis.

Nasci no Morro dos Cabritos -- extensão da extenuante Ladeira dos Tabajaras -- monstro jurássico de granito negro sobre o famoso Túnel Velho, travesseiro pétreo em que se recosta lânguida a alva Copacabana, à beira-mar plantada.

Não há nada de poético na vida de um favelado, exceto nos filmes da Atlântida e em dolentes sambas falando de telhados de zinco furados "que salpicam de estrelas (?!) nosso chão". E a chuva, nos morros de minha infância, era só mais uma Estação do infinito calvário de cada existência.

Nosso barraco "abraçava" frondosa jaqueira com tronco & pés dentro de exígua "cozinha", portinhola de entrada tão baixa que os adultos tinham que se inclinar.

O dilúvio de 1966 deitou mansamente a imensa árvore sobre nosso casebre, enquanto pedras maiores que um ônibus desciam a ribanceira arrastando tábuas e corpos à sua passagem, findando seu fatal trajeto à portas dos nobres edifícios.

Sem banheiros nem água encanada -- e 40, 50 anos depois os morros ainda não os têm -- usava-se para tudo uma "casinha" coletiva (o WC, lembram-se ?) e um poço inesgotável, milagre dos céus brotando entre penhascos ameaçadores.

Uma vala comum conduzia para a cidade lá embaixo os dejetos do populacho vil, condenado à miséria eterna, mundo de desiludidos a galgar noite após noite rumo ao seu infortúnio.

Mas houve um dia em que o coração do menino pobre encheu-se de esperanças, da certeza de que aquele Mundo injusto ainda tinha consêrto.

Noite alta já, 21 ou 22 horas, na bela pracinha rente ao Morro regurgitava multidão inquieta e barulhenta em torno de um edifício prestes a desabar sobre um posto de gasolina. O prenúncio de tragédia rondava a cidade, a comoção estava no ar.

Urgia fazer algo... surgiram cordas por todos os lados e, emendadas, formaram longos cabos atados às pressas às colunas das janelas do "pombal" de 15 andares, trechos das paredes externas voltando a ser pó 40 metros abaixo, enquanto o gigante de concreto e aço estalava e balançava.

Transeuntes ocasionais arregaçavam as mangas, metiam as mãos calosas nas cordas, a puxar para a direita o prédio vacilante que, por fim, cedeu, estatelando-se no asfalto em frente.

Vencera a união que faz a força da Humanidade! Era uma noite fria de 1956, talvez 57, mas o menino desolado de 4 anos acreditou que -- todos juntos num só pensamento -- poderiam mudar também a realidade dos morros e favelas em geral, redimensionando aquelas áreas, a partir de projetos mais humanos.

Do Morro onde nasci e vivi resta muito pouco... belos edifícios tomaram o lugar dos nossos barracos e os antigos moradores foram "remanejados" sem direito a nada, mas ainda são muitos os lugares onde a união desinteressada pode -- como as "formiguinhas" que dominaram Gulliver -- vencer o monstro da desigualdade e do egoísmo inútil e insensível.

"NATO" AZEVEDO