Armadilhas do Acaso

A Dama do Álibi – janeiro de 1984

Ela não parece infeliz. Está plácida, serena, e olha ao longe. Quase imperceptível, uma lágrima chega ao canto dos olhos. Rapidamente enxuga, com um sorriso. Mas está serena... e há aquele sorriso nos lábios. Finjo não perceber seus estados interiores enquanto aguardo. Há muita dignidade em seu olhar.. e ternura também.

Não me olha e eu aguardo. O que ? Acho que aguardo qualquer movimento seu que denuncie que me vê, que me percebe, que tem plena consciência de que sou eu que estou aqui.... Mas ela não faz qualquer movimento. O único gesto é mexer num cacho de cabelo imaginário que sei não existir. Quando nos conhecemos já usava esse corte de cabelo atual, sem cachos. Atual? Isso tem mais de 20 anos e um sabor de toda a vida!.

Seus cabelos eram curtos. Não sei dizer se é ou foi vaidosa, se arrumava, mas era prática, sem muito brilho e nenhuma fantasia. Talvez isso tivesse ajudado a imprimir mais ainda sua presença em mim. Quando ela entrou em minha vida foi como um ar fresco, uma brisa em meio ao verão, embora fosse inverno. Os primeiros dias de um inverno... lá atrás.

Sigo esperando. Ela bem aqui na minha frente e eu que tanto imaginei como seria esse momento, não faço nada. Apenas espero... Não olho diretamente dando-lhe o tempo que necessite. Olho com o canto dos olhos e sinto sua presença. Súbito escuto uma música - emoções. São tantas já vividas .. são tantas e eu não me esqueci. A verdade é que também não me esqueci dela.. A mais bela lembrança. Ela me encantava. Encanta? Estou mudo, tímido, estático e ela aqui. Não mais do que 10 cm de espaço nos separando.

Sigo sentado no sofá. Fecho os olhos e sinto a energia do ambiente dela que conheço tão bem. Nada de dramas, nada de sentimentalismo barato, mas a energia correndo solta, como sempre deixando envergonhado o homem que mais uma vez sentia que havia algo que deveria fazer. Mas o que???

Mudou a música, alguém canta Explode Coração e eu penso no meu, novamente invadido. Não dá mais para segurar... explode coração!!

O Cavalheiro do Álibi - Janeiro de 1984

Meu Deus.. ele está aqui, e eu inerte, sem fazer um único movimento em sua direção.

Sinto-me invadir pelo passado e pressinto futuro Será uma loucura pensar em futuro? Não olho diretamente para ele, mas vejo-o por inteiro, o mesmo homem amado. Deus, como amei!!!! Por tantos anos sonhei com esse momento e não faço nada. O que fazer e dizer? Uma vez mais aqui, e eu parada. Inerte. Perdida em nós dois, ou encontrada, mas em nós dois. Não é necessário uma palavra, um toque, basta sua presença tão querida.

Está bem mais velho. Eu também. Sou invadida por um intenso sentimento de ternura por seus cabelos já totalmente brancos. Eles já eram grisalhos lá atrás, mas agora inteiramente brancos como a neve. Está bem vestido e com o aspecto limpo e charmoso de sempre, talvez mais charmoso. Mais velho e mais charmoso. O meu homem! Jamais duvidei disso.

Veste-se num estilo clássico mas despojado; se diz vaidoso, mas não sei se é assim mesmo que devo classifica-lo. É prático, extremamente prático em sua forma de vestir, mas se veste bem, com bom gosto. É um homem extremamente interessante, e segue tão ou mais interessante do que quando eu me apaixonei. Me apaixonei? Acho que amei, ainda amo, é bom ser honesta comigo mesma. Não lhe esqueci, não dá para esquecer, ele simplesmente está...sempre. Bom, acho que algo devemos fazer, ou não? Está sentado no sofá da minha sala, está como por anos sonhei um dia estaria ainda mais uma vez, nem que fosse a última. Não me diz nada, parece que espera. Quantas vezes esperamos os dois. O que? não sei, só sei que esperamos. Nossa história foi repleta de intensos silêncios e esperas em que ficávamos simplesmente um perto do outro como aguardando sabe-se lá o que.

Percebo que estou bem mais velha, e ele também notou, mas o que fazer contra o tempo? Ele leva tudo, juventude, sonhos, só não leva um grande amor. Nesse momento o tempo desapareceu. Mas se passaram muitos anos, não adianta fazer de conta que não. E o que espero? Deixei tocando uma trilha sonora que adoro. Agora toca Todo o Sentimento: Depois de te perder, te encontro com certeza, talvez num tempo da delicadeza.... O tempo da delicadeza parece estar se aproximando. Sorrio, não consigo evitar um sorriso em meus lábios. Percebo o quanto fomos felizes sempre. Ao nosso modo, mas muito felizes. Cúmplices desse amor. Reféns do sentimento.

A Dama do Álibi – 13 de janeiro de 1964

Como sempre estou cheia de trabalho e com o alicate nas mãos. Ainda é necessário esse sacrifício, ainda é e tenho que aceitar isso. O telefone está tocando, atendo e do outro lado do aparelho quem fala é a Marize que me chama para irmos as três, eu, ela e a Lucia para um restaurante na Lapa. O restaurante se chama Álibi. Nome sugestivo, mas o alicate me espera, melhor declinar do convite. Ela insiste e diz que está segura que aquela seria uma noite especial. Respondo que lamento, mas não vou. E não fui. Por dentro estou sorrindo por ter contado uma mentira: não lamento nada. Estou bem assim, afinal, não seria lá que eu iria encontra-lo. É melhor ficar. E esperar o momento certo.

O Cavalheiro do Álibi – 13 de Janeiro de 1964

Estou ainda sentado em minha sala, mas meu trabalho já acabou. Estou cansado, não farei mais nada. Apanho um livro e começo a ler. O Flavio entra em minha sala e me chama para ir jantar com alguns colegas da empresa num novo restaurante da Lapa: o Álibi. Fico parado por uns instantes, por um lado tentado a ir, afinal, preciso encontra-la. Quem sabe não seria lá o nosso encontro? Depois sinto o quanto meus pensamentos são tolos, é claro que vai ser mais uma noite entediante, sem encontrar ninguém interessante, ninguém como ela. Peço desculpas e digo lamentar ter um compromisso para jantar do outro lado da cidade. Ele faz um muxoxo e sai. Sinto alívio, afinal, estou bem aqui. Foi bom ter ficado, e sigo parado pensando: nela!

A Dama do Acaso – num dia de Janeiro de 2004

Estou com meu filho de 2 anos passeando no Jardim Botânico. Já cansada, sento-me no banco que costumo sentar diariamente quando minhas forças já se esgotaram de tanto jogar bola com ele. É meu segundo filho, com uma diferença de 15 anos do primeiro e percebo que já não tenho tanta resistência. Uma senhora de seus setenta e poucos anos senta-se ao meu lado e puxa conversa. Vive sozinha e acaba por me relatar o porque de sua solidão. Diz que por toda a vida sonhou com alguém especial, e foram tão nítidos seus sonhos, que seria capaz de descreve-lo fisicamente. Ela me diz que jamais conseguiu encontra-lo, que hoje está consciente de que era apenas uma imagem interior. Conta também, que houve uma época distante em que acreditava que ele existia e que por muitos anos chegou a se cobrar não ter saído com as amigas numa determinada noite de janeiro de 1964. Ela havia cismado que naquela noite teria encontrado com ele, num tal restaurante Álibi na Lapa.

Quando ela me disse isso, comecei a chorar, para espanto dela. Minhas lágrimas eram de impotência e desolação. Na véspera de nosso encontro, nesse mesmo banco, um senhor idoso em cadeira de rodas, pois já não conseguia andar por conta da idade, se aproximou de nós para acariciar meu filho, e me contou dos filhos e netos que jamais teve. E do quanto sonhou. Descreveu a mulher imaginária com quem por tantos anos sonhou acreditando ser uma mulher real, e me dizia que era tão real essa imagem interior, que jamais amou outra que não fosse ela. Disse também, que a realidade dessas imagens certa feita lhe deixou sentir muita culpa, e isso, por anos a fio. Tudo por conta de um convite do Flavio, alguém que trabalhava no mesmo andar que ele antes de se aposentar, para jantar num restaurante na Lapa. E me disse: - veja só minha jovem, como somos tolos na juventude. Como poderia encontrar o que não existe fora de nós? Hoje sou velho, maduro e vejo as coisas com mais clareza, e por isso me sinto seguro do que lhe digo: era tudo imaginação!

claudia araujo
Enviado por claudia araujo em 21/05/2006
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