O PODER DA MEMÓRIA.

Estava no banco. Fila dos idosos. Uma senhora na idade aparente dos sessenta e cinco olhou para mim e sem rodeios perguntou:

- O senhor é João Fonseca?

- Pois não, senhora.

- Eu sou neta de Lantier.

- João Lantier de Araújo Cajaíba!

- É.

- Grande homem Lantier. E grande amigo. Extraordinário companheiro de trabalho. Trabalhamos lado a lado alguns anos. O homem que salvou a cidade de Queimadas de ser assaltada, casa a casa pelo facínora mor de todos os tempos neste país Brasil Nordeste. Mas... Me desculpe, que semelhança acha em mim com o João Fonseca dos trinta anos? Estou nos oitenta e sete!

- É, achei... Homens como o senhor, marcam uma comunidade. Seu nome ainda é lembrado. Tenho um poema seu de memória. Para declamação na escola primária.

- Bom ouvir isso, muito bom. Sinal de que não se escreve em vão.

A seguir, continuei perguntando o nome de seus pais. Era filha de uma das filhas do coronel Lantier, cujo nome prefiro não revelar. Não estou autorizado, poderia haver constrangimento. Trabalhei com Lantier pelos anos de 1958, 1960, por aí assim. Ele coletor federal, eu o escrivão da coletoria. Fomos visinhos de porta, os pais da interlocutora e eu, minha família. Ela devia ser muito criança na oportunidade. E o poema memorizado - não perguntei, mas será possivelmente, o intitulado QUEIMADAS, um louvor à sua terra.

Enquanto chegava a nossa vez, vem uma jovem com uma criancinha.

- Minha filha, ela diz.

Eu cumprimento a moça e lembro:

- Bisneta de João Lantier.

E fixando a criança:

- Tri-neta!

Passo a relembrar, agora em silêncio, uma velha e dolorosa história ouvida do companheiro, algumas vezes repetida. De bandido e frieza criminosa, de sangue e sadismo dos mais monstruosos de que sei. Mas também de muita coragem, sensibilidade e capacidade de diálogo.

Em que ano, não me lembro. Entre 1929 e 1932. O bandido Lampião entra na cidade de Queimas. Uma tarde quente, abrasadora. Papeavam os soldados. As armas ensarilhadas no interior da casa, os praças jogavam gamão uns, outros jogavam cartas ou dominó, todos se divertiam. Os bandidos chegam ao quartel exatamente quando aí estava pressente todo o destacamento policial, constituído de um sargento, dois cabos e dez soldados. Todos ou quase todos nus da cintura para cima, à sombra da parede do oitão leste. O verão de Queimadas é de uma temperatura terrível. Os bandidos entraram de arma engatilhada, tomando-os de surpresa.

- Todo mundo preso, macacada da peste, brada o chefe e cutuca o traseiro do sargento com o seu mosquetão.

- Cadê a chave da cadeia? - berrou.

O soldado carcereiro foi pronto em tirá-la do cós e entregar. Mandou abrir a porta e soltar todos os presos. No lugar destes fez pôr os treze praças. Deixou dois bandidos de vigia e seguiu com os demais diretamente para a coletoria federal. A essa altura a notícia havia corrido por todas as ruas da cidade. E o coletor esperava tranqüilo. O bando entrou porta à dentro, o chefe gritando:

- Sou o capitão Virgulino Ferreira, vulgo Lampião. Abre o cofre e me dá o dinheiro.

- Muito bem, capitão. Sou o coronel João Lantier, coletor federal.

- Coroné! Eu sou de patente, recebida de meu padim pade Ciço Romão, que mandou o guverno fazê. E vosmicê, é coroné de que?

- Também sou de patente, capitão, coronel da guarda nacional (bem lembrada lorota, muito oportuna e sadia mentira, revelando um extraordinário sangue feio). O título está em casa, concluiu.

- Tão tá bom, abre o cofre, coroné e me dá o dinheiro!

- Mas, capitão, o dinheiro não é meu, é do governo. Se eu lhe entregar, serei demitido e ainda vou pra cadeia.

- Não quero sabê, o coroné se ajeita. Abre o cofre, urrou manejando o mosquetão para levar a abala à agulha.

E Lantier absolutamente tranqüilo:

- Capitão, o senhor me dá um documento?Aí, assinando o documento na qualidade de capitão, tem o direito de levar o dinheiro, porque, como eu, representa o governo federal, é oficial de patente.

- Tá bom, tá bom, faz o ducumento qu´eu assino.

- Capitão, posso mandar chamar o doutor Juiz de direito para testemunhar? Ele representa a lei e assim fico garantido. Preciso estar garantido para não ir pra cadeia, capitão.

- Pode, pode mandá chamá esse juiz. Já, depressa.

Veio o juiz. Era um homem de cor. Ao ser informado da situação pelo coletor, mandou chamar o tabelião de notas para fazer o termo. O bandido, impaciente, resmungava de um lado para o outro.

- Depressa, depressa!

Enquanto isso chegavam um bule de café e um bule de leite, fumegantes. Uma bandeja de requeijão partido em pedaços e outra de biscoitos maria. De surpresa. Sem ninguém pedir, ninguém esperar, nem o coletor. Foi uma lembrança venturosa da vizinha, professora Ceci que, pessoalmente veio trazer o lanche, acompanhada por uma outra vizinha.

- Que povo farto, aí sorriu o bandido, que povo farto!

Ia chegando agora o tabelião Nascimento. Era preto, igualzinho ao juiz. Esse eu ainda conheci no exercício do cargo, o juiz, no meu tempo já fora promovido para categoria mais elevada. O bandido ao fixar o tabelião, aí fechou a cara e debochou:

- E a justiça daqui é negra! E senhora (falava agora à professora Ceci), tombém é preta.

Enquanto Lantier abria o cofre e contava o dinheiro, os bandidos se fartavam, todos rindo felizes. Já começava a haver certo relaxamento da tensão e o juiz gracejava com o bandido. Contado o dinheiro e as cédulas arrumadas em pacotes, também o coletor participava do gracejo. O tabelião lavrou o termo da ocorrência minuciosamente e todos assinaram. O coletor tomou a palavra:

- Satisfeito, capitão?

- Satisfeito coroné, satisfeito!

E, já ria descontraído. Disse a seguir:

- Agora vou fazer um corra na rua, dá um catado.

- Capitão, não faça isso, não será preciso, pediu Lantier. O doutor Juiz e eu conhecemos todo mundo aqui, sabemos quem tem dinheiro e quem não tem, quem tem mais e quem tem menos. Escrevemos uma lista de contribuição com a qual o senhor fique satisfeito e não precisará sair de casa em casa, perdendo tempo e assombrando muita gente. Faz uma figura bonita.

- Tá bom. Escreva, escreva a lista, qu´eu disisto da corra. Quero vê premero a lista.

Juntos o coletor, o juiz, o tabelião e a professora, foram lembrando e relacionando os comerciantes e pessoas mais abastadas uma a uma, estipulando uma cota para cada qual, conforme as posses estimas pelos quatro. Tudo somado, o coletor mostrou e perguntou:

- Fica satisfeito, capitão?

O valor era alto, além, da expectativa do bandido. Ele sorriu e perguntou:

- Ninguém vai negá?

- Ninguém, capitão, ninguém. São pessoas de bem, afirmou Lantier. Mando um portador procurar de um em um.

-Tá bom, tá bom.

O escrivão da coletoria fez a coleta e trouxe o valor relacionado sem falta nenhuma. O bandido disse muito sério, como quê admirado:

- É um povo farto mesmo, é um povo farto!

Retornou ao quartel e se dedicou à matança dos praças. Cada bandido sangrava um. A professora Ceci teve outra idéia bonita e saiu de casa em casa, convidando as senhoras da sociedade, sem faltarem as esposas do coletor, do juiz e do tabelião, ela à frente de todas. Cada qual levava um punhado de jóias, para oferecer de presente ao chefe dos bandidos. Este recebeu sorrindo, enquanto seus celerados iam matando os praças, sangrando um a um como se sangra o animal no abate. E consta que lambiam o sangue no punhal.

A professora tomou a palavra e pediu em nome de todas as senhoras presentes:

- Capitão o senhor pode nos dar um presente?

- O qui é? O qui é?

- A vida do sargento. É um chefe de família com oito filhos, na idade entre os doze anos e os dois meses.

O bandido estrilou:

- Não, macaco não, macaco num perdôo.

Todas as senhoras fizeram couro com a professora no apelo. Não matasse aquele homem, não deixasse aquelas crianças sem pai para a morrerem de fome. Uma delas teve uma idéia luminosa:

- Capitão, o senhor não foi um menino rico, foi?

- Não, num fui não.

Por um momento se deixou amolecer de coração:

- É, num mato o macaco não. A pedido das sinhora num mato.

E dirigindo-se a este mandou retirar o cinturão e desabotoar as calças. Disse:

- Vai andano daqui até lá (apontou o local), sem corrê. Quando chegá lá, nois começa a atirá. Aí tu vê se tem perna para corrrê de calça nas mão.

E assim foi. Quando o sargento chegou ao ponto marcado o tiroteio começou, balas chovendo nos seus pés. Entrou na primeira casa aberta e escondeu-se debaixo da cama.

Não morreu de tiro, mas durou pouco. Sentiu-se desmoralizado. Traumatizado. Foi recolhido ao quartel do comando na capital para responder a processo crime, como responsável pela morte de seus soldados. Antes de fechar-se o inquérito, fechou-se a cova de seu sepulcro.

Se há algum excesso nesse caso verídico, conhecido e ainda hoje lembrado nas queimadas de Santo Antônio das Queimadas, peço desculpas ao leitor. Quem conta um conto, acrescenta um ponto, é dizer antigo. Sobretudo quando se é useiro e vezeiro no hábito de contar mentira.

09.07.2007.