LIBELO ANTI-AEROPORTO

A minha varanda não é a varanda do aeroporto dos bons velhos tempos, onde em menino me levaram a ver os aviões, e mais tarde também levei os meus. Fica mais longe no tempo e na distância, mas ainda assim bem perto para sofrer da poluição sonora e outra que se não ouve e só se vê nas cortinas que eram e nas vidraças que perdem transparência.

O nosso aeroporto passou já de orgulho a engulho nacional. Da província quem vinha tinha roteiro certo na capital; Portela, Jardim Zoológico, Feira Popular e o resto eram cantigas em noite de Parque Mayer.

Eu vim da província em menino, voltei de novo adulto, e infantil achei ser bom ter vizinhos com quem sonhei, tão altos eram no céu da minha província da Beira, que embora alta fica tão longe do céu como Lisboa. Ao tempo pensava que não.

Nessa varanda de outrora com acesso livre sem seguranças e vigilantes proibindo, limitando controlando, eu vi pasmado, arregalado, emocionado, esses pontinhos raros e brilhantes lá do céu da Beira, crescerem de forma e som até ficarem distintas e sonantes bisarmas imponentes, que com perícia insuspeitada roçavam o solo leve levemente, abrandavam firmemente, passando do voo à marcha com garbo marcial, curvavam na pista e, lentamente soltando sempre rugidos controlados estacavam à nossa frente impantes e serenas após um frémito tremor de ser mortal.

Outras imagens me perduram ao invés, de pousadas naves quietas e caladas, despertarem do sono inerte em roncos de leão e arrancarem do solo toneladas desfeitas contra o vento e a distância em penas leves vogando etereamente com os destinos de almas inocentes.

Oh mágica visão de tardes doces! Domingos paternais de trinta anos!

Hoje assisto a descolagens e oiço aterragens quando olho, que ouvir não ouço como há trinta anos, e ver só abstracto e de soslaio.

Quando o troar dos ares em projecção, me agridem além dos tímpanos os nervos, penso agitado e fulo ampliar as minhas queixas por jornais. Mas ... o tempo da passagem é um jacto de minuto e, deixa em seu lugar um tão profundo grato e beatífico silêncio tão profundos, tão bem conseguidos, tão gratificantes, tão celestiais, que só talvez os cosmonautas eleitos saboreiem na estratosfera. Cá na esfera é um maná.

Também devo confessar ter já premeditado no auge do ruído intolerável adquirir uma Kalachnikov automática e postar-me na varanda anichado no pombal (que ironia!), aguardar a aproximação das naves, indiferente às nacionalidades, às crianças, aos emigrantes, às divisas, à cruz vermelha, à cruz de Cristo ou do diabo e premir o automático. Que diabo! O direito ao silêncio não está na Constituição? Pois na minha está.

Que instintos, meu Deus. Reconheço. A Constituição não se defende assim. È com argumentos. Daí que me deu para verter no papel um argumento, ou antes um lamento dos que vivem paredes meias com aeroportos, caminhos de ferro, auto-estradas, discotecas e vizinhos amantes da alta fidelidade ao rock, rap e outras musicas “suaves”.

Somos muitos, dispersos é verdade, desunidos por distâncias, ignorâncias, fronteiras, cordilheiras, línguas e dialectos, mas unidos venceríamos.

Calma se me estão a ler e vos inflamo, camaradas! Não sou radical, e não contem comigo se é para reduzir o mundo ao silêncio.

Que fique bem claro, apenas peço um minuto de silêncio.

Se todos nós pedirmos um minuto de silêncio a quem nos rodeia no dia X à hora Y, os governos vão ouvir e estranhar o silêncio. Ou seja, eu proponho a anti-manifestação. Só dá barulho e ás vezes choques com a polícia de ...

Pelo menos vamos conseguir o tal minuto de silêncio estranho ou tal estranho silêncio num minuto.

Depois... depois será o que Deus quiser, ou eles falam mandando calar, ou nós fazemos dois minutos de silêncio e já seremos o dobro dos pacientes no dobro do tempo.

Depois ... depois se não der resta a fé no ditado “ às três é de vez”

Seremos tripla gente vezes triplo tempo igual a um produto invejável de silêncio. Equação fatal.

Aí sairão concerteza normas para o meu aeroporto, que o vosso è longe e não precisa, rodas de borracha para os vossos amigos comboios, insonorização para os apartamentos dos vossos vizinhos e amigos da onça e da musica, e outras medidas coercivas.

Vamos no entanto reivindicar o direito ao barulho das crianças, isentas de silêncio, é ponto assente, ainda quando emitam e imitem os sons dos jactos, dos comboios ou do rock mais pesado. Todas as regras têm excepção e as crianças são a excepção a todas as regras.

Deste solidário sonho embalado, desperto de súbito trespassado por decideis muito acima do que è bem.

Vem aí Uma esquadrilha da Força Aérea. São muitos! Deus nos acuda!

P.S. – Do risco além do acústico deste aeroporto cercado não de montes mas de vidas, eu não falo, porque não penso. Nem quero. Mas rezo. Orai por nós, também ao Supremo Controlador Aéreo, que a outros técnicos eu já ouvi dizer que está tudo controlado.

Arbogue
Enviado por Arbogue em 21/05/2009
Reeditado em 22/05/2009
Código do texto: T1607234
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