Meia prima

O dia anterior foi exaustivo, não dormi muito bem, e isso me deixava de mau humor.

Mesmo em hora supostamente divertida com meu cão, admito, não muito bonito por sinal, com aquele olhar caído, olhar de pedinte, como daqueles comerciais que agente tem pena do cachorro, não havia graça nenhuma. Mesmo porque o cão quando latia, escorria uma baba branca de sua boca que eu tinha de ficar me esquivando pra não cair em minha boca de tanto que ele balançava a cabeça de alegria quando brincava.

E para completar a chatice ele pulava em cima de mim balançando o rabo, deixando marcas de duas patas enormes em minha roupa só pra me lembrar da minha mãe olhando com os olhos fixos em mim dizendo: “cuidado com o Ás não vai sujar a roupa, já tomou banho e blá, blá, blá ”. Ah, o nome do meu cão é Ás, como já deu pra perceber.

Na verdade eu não sei quem era mais chato, o meu cão ou a minha tia Néia.

A tia Néia tinha um ar de grandeza, nariz empinado, sempre falava com certeza de tudo, como se soubesse de fato todas as coisas, isso me impressionava. Os olhos dela me assustavam, eram escuros em volta, com bolsa embaixo dos olhos. Ela passava algo em volta deles eu acho, porque toda vez que me beijava nas bochechas, como odiava aquilo, deixava algo tipo oleoso, meio nojento, sem falar no cheiro desagradável que exalava, não saía nem lavando o rosto. É claro que sempre dava um jeito de correr para o lavatório. Sem comentários.

Não precisa nem dizer que a minha tia não vinha sozinha.Trazia junto a minha prima Laís.

Posso dizer que era legal e não ao mesmo tempo, mais ou menos isso. Eu explico. Era legal porque ela era da minha idade, e não era porque contava muitas vantagens. Eu disse prima? deixa eu explicar. Ela era filha de criação da minha tia. Minha mãe vivia dizendo: “ela é sua prima....não interessa, trate-a bem como se fosse sua prima legítima.”

Bem, como mãe tem sempre razão, lá ia eu ensaiava um sorriso e quando elas apontavam na porta, eu sorria compulsivamente não tendo mais a noção de como estava o meu rosto nesse momento.

Olhando fixamente para minha tia, eu pensava comigo mesmo, lá vem ela, lá vem ela, é agora, é agora a hora do beijo. A cara dela ia crescendo, crescendo, se aproximando da minha e....Deus do céu não quero nem lembrar.

Mas voltando à minha prima, que não é minha prima, que eu tinha de tratar como prima, é isso, só contava vantagens pra humilhar agente. E eu tinha que ficar escutando, porque minha mãe sempre me ensinou que visita é visita, mesmo parente é visita e que é igual a quem não é parente, mais ou menos isso, e um monte de outras palavras que não me lembro agora. Mas o que me deixava encabulado é que eu não me lembro da Laís fazer a mesma coisa comigo quando íamos a casa dela, ou seja, fazendo sala pra mim na casa dela, não dava nem pra “abusar”, quer dizer, aproveitar da gentileza.

Confesso, eu não a suportava, engolia todas as vantagens que contava.

Dizia que seu pai sempre viajava ao exterior e blá blá..blá. Que eu saiba, ele nunca saiu do estado, estado de dureza. Falou que seu pai foi a África, etc,etc, aí eu não agüentei e perguntei: Como você sabe dessas coisas? _ Ela me explicou fazendo cara que mais ou menos sabia, assim meio em dúvida do que se tratava realmente. Ela saiu com uma desculpa, de que havia escutado o seu pai disse numa discussão numa noite antes dela dormir. O pai disse bem alto: “quando eu sair de casa eu vou pra bem longe daqui, pra áfrica e assim e assim.”

Cá com os meus botões, se fosse assim o meu pai seria mágico. O que já ouví ele dizer pra minha mãe quando eles brigavam que ele iria sumir, desaparecer do mapa, e tal e tal, nem por isso o meu pai é mágico! Só confirmei as minhas suspeitas, ela entendera tudo errado. Ela na sua mente viajava, e dizia que todos os seus brinquedos estavam guardados no armário, escondidos pra não sujar e mais blá blá blá e eu escutando aquilo tudo e até desculpava, é coisa de menina! E tome estória, nunca descobri o tal armário de brinquedos até hoje.

Quando já estava cheio de ouvir, arrumava logo um jeito de dar o fora e o jeito era dar um belisco nela, sem ninguém perceber.

Precisava ver a cara dela quando se preparava para abrir à boca a chorar, era meu lucro. E ela chorava, chorava de soluçar. Que prazer eu tinha nisso! Minha vingança estava completa. Era uma satisfação que não dá pra explicar, era um certo contentamento de dever cumprido, tipo assim um verdadeiro herói, daqueles que toda criança deseja ser quando crescer, mais ou menos isso. Tem mais, misturado ao sabor de coisa gostosa, prazer absoluto.

Não precisa nem dizer que quando Laís gritava chorando, o Ás uivava junto como se fosse uma canção bonita aos meus ouvidos. Eu ia as nuvens com isso. Mamãe e a tia Néia não sabiam se calavam a Laís ou o cachorro.

Sinto saudades daqueles tempos, velhos tempos.....

Hoje sou casado, cuido da segunda geração do Ás. E a Laís? A Laís é uma longa estória.

Só posso dizer que ela está grávida e esperando nosso segundo bebê, o resto da estória conto outra hora.

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