Izabele

Quando do nascimento de seu segundo filho, Izabele lembrou-se de seu primeiro amor, Geninho. Henrique tinha o mesmo olhar curioso de seu primo, que há tantos anos, lhe tinha proporcionado tão infinita declaração de amor e que, sem que ninguém soubesse, transformou-se no seu único e verdadeiro amor. Desde aquela época não se viam.

Izabele casou-se com Doutor Marcelo, psiquiatra amigo e confidente, que a orientava desde os tempos em que perdeu João, seu primeiro marido. Tornou-se amigo da família e acobertou Izabele de sua tristeza durante o luto de seu falecido esposo.

Desde então Izabele praticamente não mexia no seu passado. Eram poucas as vezes em que dava trégua às lembranças. Numa delas lembrou-se novamente de Geninho durante uma festa de escola, onde Julia, sua terceira filha, apresentou um musical. Sua timidez de bochechas vermelhas fez Izabele querer rever Geninho. Revirou os espaços quase vazios de suas memórias e lembrou-se do menino magrelo que sempre ficava num canto fabricando alguma coisa com palitos de dente durante os almoços de família. Aquele menino que dizia que um dia ia leva-la a lua.

Izabele vivia, a maior parte do tempo, à deriva dos sentimentos do coração. Doutor Marcelo, como bom entendedor das questões do coração, dizia que a razão é o que diferencia os homens dos grandes homens. Dizia que as emoções eram a maior expressão de fraqueza. E Izabele relutava, mas, com o tempo, deixou de acreditar que os sentimentos ainda existissem nela.

Izabele foi secando. Era mais pele que alma. Quando Jorge, o quinto filho, completou doze anos e lhe apontou na face a primeira espinha, Izabele tentou buscar na lembrança onde poderiam estar seus bagulhos do passado depois de tantas mudanças. Não conseguiu. Já enterrada no seu presente, não pode se lembrar. Outra vez, quando Georgina, sua sétima filha, adoeceu e emagreceu oito quilos, Izabele não conseguiu ver na menina pálida e esquálida, a semelhança com seu antigo amor.

Os negócios psicológicos do marido viviam em ascensão e Doutor Marcelo estava sempre viajando para cuidar de doentes da psiquê em todos os lugares do mundo. Viajava para todos os lugares. Primeiro foi para o Japão palestrar sobre os tipos de problemas psiquiátricos e como trata-los, depois para a Alemanha, onde iniciou novos negócios. Foi para a Itália expor seus talentos na televisão, para a Inglaterra, onde abriu consultórios e para Roma se encontrar com o papa. Por fim foi para Dinamarca cuidar do coração de uma princesa.

Doutor Marcelo não mais voltou. Enviou uma carta à esposa, grávida do décimo filho, dizendo que teria sido surpreendido pelas garras do amor e que ela, Izabele, também deveria se deixar levar e acabar com a dureza de seu coração. Izabele não chorou.

Izabele chamou o menino de Eugênio. Mas não se lembrava mais de nada. Izabele tinha se desligado por completo da sua infância curiosa, da sua adolescência rebelde, sua juventude apaixonada. E, em algumas poucas vezes, tentou entender porque olhava tanto para o céu.

Izabele tinha os olhos secos e precisava de colírios especiais para umidificação. Isso já lhe tinha acarretado vários problemas e, na falta do colíro, não podia dormir pelo medo de não conseguir fechar os olhos. Estranhou, portanto, a sensação de ardência e queimação na vista seguida de lágrimas salgadas que lhe doíam como se fossem espinhos, quando ouviu do outro lado da linha:

- Izabele! Consegui, Izabele! Eu... Eu... Eu conse-gui... Con-se-gui, Izabele!

E não pode controlar suas pernas, já fracas pela idade e danificadas pelo último derrame, e caiu sobre o tapete, desmaiada. Seu coração frenético pelo susto resolveu parar de vez de bombear sangue para o coração inútil sem emoções e lhe presenteou com um ataque fulminante. E Izabele não pode ouvir as últimas palavras de Geninho, que dizia, eufórico:

- Consegui construir o foguete, Izabele! Posso te levar pra lua!

Carol Bahasi
Enviado por Carol Bahasi em 23/05/2006
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