O dia em que resolvi não falar

Certo dia ao acordar, tive uma decisão inusitada, “resolvi que não iria falar até a manhã seguinte”, não me perguntem o motivo, não saberia explicar e mesmo que tentasse vocês não conseguiriam entender (até hoje não compreendo aquela decisão), apenas posso afirmar que foi uma experiência fora do comum, e aconselho (dizem que se fosse bom, não davam, vendiam) a tentarem pelo menos uma vez na vida, nem que não consigam o dia todo, garanto que será uma aula de interpretação.

Com a decisão tomada, levantei e como de costume fui ao banheiro, e logo em seguida fui beber o meu café (puro e meio amargo) acompanhado de um pãozinho com queijo, minha esposa já tinha saído para levar os nossos filhos à escola, ou seja, até aquele momento ainda não tinha sido colocado a prova, sozinho, não havia a necessidade de conversar com ninguém. Como ocorrem todos os dias (menos neste) quando me preparava para sair, minha mulher chegou de um jeito diferente, ao invés de um simples beijo de “bom dia e até logo” percebi que o seu corpo estava mais radiante, os seus olhos brilhavam e o seu sorriso iluminava, e um “BOM DIA” contagiante atingiu os meus ouvidos. Pronto!!! O desafio começava, depois desse “BOM DIA”, não poderia ficar inerte, sem ao menos dizer uma palavra, e sem titubear peguei-a no colo e nos amamos, como não fazíamos há muito tempo. Sem ela entender direito o que acontecia a deixei na cama, e com um sorriso, seguido de um aceno de “até logo”, me despedi e fui trabalhar.

De casa para o trabalho demorava em média 40 minutos, sendo 10 minutos de caminhada e 30 minutos de condução, no percurso a pé, encontrava com o vizinho da esquerda, o dono do bar, o empregado da padaria, o jornaleiro e o taxista (perceberam que todos esses citados de certo modo tem algo em comum em suas profissões???), o segundo desafio estava lançado e olha que o ponto de ônibus ainda me aguardava.

O vizinho da esquerda, muito gente boa, e sempre de bom humor, cumprimentou de sua casa: - “Bom dia!!! Tudo bem??” – Acenando com o polegar para cima e um balanço de cabeça (vocês precisam tentar visualizar a cena), prossegui no meu caminho, o sempre sorridente dono do bar perguntou quando iria a sua casa conhecer o mais novo integrante (o seu neto acabara de nascer), utilizando mais alguns gestos tradicionais fiz algumas voltas com o indicador na horizontal e para frente (mostrando ou tentando mostrar a ele que em breve faria esta visita), por sorte o empregado da padaria encontrava-se de folga, da banca de jornal não escaparia (todos os dias comprava o jornal para ir lendo no trajeto dentro do ônibus), bem educado o jornaleiro já estava no aguardo com o exemplar na mão, e sempre com a mesma pergunta: - “Você viu a economia??? Outro crime, heim!!! Aonde o mundo vai parar??? Erguendo os ombros e com as duas mãos espalmadas a minha frente ao mesmo tempo fiz o gesto, na intenção de que entendesse: (o que podemos fazer Seu Miguel???), o taxista era a última escala antes da parada de coletivos, meio irônico veio perguntando sobre o meu time: - “Caramba, não ganha mais de ninguém, heim???” – (realmente o tricolor não passava por uma boa fase, mesmo tendo ganho o último campeonato brasileiro, tornando-se o único DECACAMPEÃO do Brasil), balançando uma das mãos para os dois lados (no característico mais ou menos), conseguia superar mais um obstáculo.

Na parada do coletivo, encontrei os colegas de condução e de uma vez cumprimentei a todos (levantei um dos braços de mão aberta e o movimentei para todos os lados), o estresse do dia-a dia fez que passasse despercebido por muitos, abri o jornal e ali permaneci calado lendo as suas páginas esperando a condução, atrasado em cinco minutos o nosso transporte (só me faltava esta) as pessoas começaram a reclamar da precariedade do transporte paulistano, quieto em meu canto confirmava acenando coma cabeça algumas vezes para a frente. Quando chegou, esperei todos entrarem, o “velho” motorista já conhecido, cumprimentou e estendendo o meu cotovelo, levando o antebraço e a mão até a sua mão, cumprimentei com um bom aperto de mão, o mesmo aconteceu com o cobrador, caminhei ao assento e continuei a ler as notícias até chegar ao ponto de destino.

No trabalho, o corredor que dava acesso ao meu escritório era relativamente curto, mas intensamente povoado, (nessa hora como poderia ter o poder da invisibilidade), sem alarde fui transpassando pelas pessoas calmamente, ao adentrar em meu escritório (aliviado) sentei em minha cadeira, e fiquei me perguntando como tinha conseguido esse feito, nos intervalos entre um café e outro, comecei a desenvolver um repertório de gestos combinados que de alguma maneira transmitia a resposta necessária naquele momento, durante todo o expediente (nove horas de jornada) conservei-me calado, ao fim estava exausto, daquele momento em diante depois deste teste, o que viesse era lucro, e assim também continuei no caminho inverso.

Fui passando pelos mesmos “personagens” e mais alguns buscando a minha casa, e ao entrar, minha esposa e os nossos filhos estavam lá, arrumados prontos para sair (o susto foi tão grande que neste caso foi espontâneo o gesto do corpo), utilizando as expressões corporais perguntei o que havia acontecido. Foi então que lembrei que no dia anterior combinamos de passear, assistiríamos o lançamento de mais um filme brasileiro, que desde “Central do Brasil”, uns vinte anos atrás estava prestigiado, mais uma prova em meu caminho (e o que é pior, surpresa), durante o banho, imaginando o que poderia vir, buscava estratégias (quase no fim do dia, faltava pouco para o seu término, não voltaria atrás da minha decisão), saímos em direção ao shopping, para ganhar tempo caso ocorresse imprevistos (trânsito por exemplo) liguei o rádio e sintonizei na estação de rádio preferida, músicas ecléticas e boas, “sertanejo, samba, anos 60, MPB, o nosso “REI” Roberto Carlos), percebendo a minha “viagem”, minha mulher entrou no embalo e em silêncio (como planejado) seguimos para o nosso destino.

No cinema, acomodados em nossas poltronas (eu agarrado a ela como no tempo de namoro), assistimos o filme (belo roteiro, foi aplaudido com as pessoas de pé), agora à volta o bicho ia pegar (ainda tentei usar a mesma tática), só que a discussão sobre o longa estava presente, quando perguntado sobre o filme, respondia em diversos gestos (estava quase dando um nó em mim mesmo, pensa que é fácil???). À noite enquanto a esperava em nosso quarto, bolando qualquer coisa que pudesse entreter-la, caso viesse com inúmeras perguntas ( e o que melhor do que “aquilo”, heim??), e depois de dar banho neles e colocá-los para dormir ela apareceu semi-nua com uma cara que dizia: - “Vamos continuar o que estávamos fazendo pela manhã??” –

Sem pensar duas vezes voltamos a nos amar intensamente, entrelaçados, como dois eternos jovens apaixonados, ao amanhecer, abraçado a ela, ainda sentido o calor de seu corpo, e aliviado por superar o objetivo estipulado no dia anterior, “O dia em que resolvi não falar”. Pensativo, minha esposa perguntou no que estava pensando, liberado da “promessa” olhei em seus olhos e respondi bem alto para todo mundo ouvir: "EU A AMO".

Regor Illesac
Enviado por Regor Illesac em 28/05/2009
Código do texto: T1618848
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