"Santa Casa de Misericórdia de Santos" =Crônica de Gratidão=

Dos meus tempos de menino recordo-me de minha mãe comentando sobre certas crueldades: “É de cortar o coração.” Guardei essa curta frase na memória e sempre a usei apenas intimamente. Quando alguma coisa me dói, me fere profundamente, logo a digo para mim mesmo.

Hoje ouvi uma dessas coisas. Uma dessas coisas de cortar o coração e que me deixam arrasado. Uma coisa referente ao sistema de saúde norte-americano e que para mim era simplesmente inimaginável: na mais poderosa nação do planeta os hospitais atendem os carentes apenas para os primeiros socorros e depois os enviam de táxi para o albergue mais próximo. Mas não os entregam aos albergues. Simplesmente os abandonam nas proximidades dos albergues, muitas vezes trajando apenas as sumárias roupas hospitalares, e o táxi vai embora. O pobre coitado que se vire. Se tiver sorte, se o albergue não estiver lotado, pode ser que seja recolhido.

Meu filho, que assistiu o tal noticiário, viu a filmagem do abandono de uma velhinha na porta de um desses albergues e descreveu, horrorizado, o ar de estupefação, de abandono, de desalento no olhar da pobre anciã. Só pela narrativa senti que cortavam meu coração. Fiquei imaginando uma pessoa idosa abandonada na rua, sem dinheiro, sem condições, doente, sem qualquer assistência, semi medicada, abandonada na porta de um albergue e, sentindo um amargo nó na garganta, pensei no quanto muitas vezes a gente se aflige ao ver um cão “pele-e-osso” farejando desesperado à procura de comida e pensa logo em ajudá-lo. Que tremenda crueldade deixar um doente qualquer abandonado na rua! O capitalismo levado ao extremo. E logo em um país onde tantos estrangeiros querem viver, muitas vezes até arriscando a vida para isso, como é o caso de tantos mexicanos e cubanos, sem contar outras nacionalidades.

Ao ouvir tal relato eu senti, mais do que nunca, uma tremenda gratidão pela Santa Casa de Misericórdia de Santos. Em 1984 minha úlcera duodenal supurou e eu cheguei à Santa Casa rezando, sinceramente, desesperandamente, para que a morte viesse logo. A dor era mais do que insuportável. Era enlouquecedora. Em alguns minutos, sem fazer ficha, sem mostrar documentos, sem formalidade alguma, fui levado para a sala de cirurgia e operado às pressas.

Depois de operado permaneci por muitos dias ali e fui alimentado, cuidadosamente medicado a tempo e à hora, mas ainda me dei ao ingrato direito de me queixar da falta de travesseiros na altura a que estava acostumado. Hoje tenho raiva de mim mesmo por isso.

O médico que me operou nada cobrou por ser amigo de meu cunhado, médico também, e a Santa Casa não me apresentou conta alguma quando saí.

Até hoje, ao passar pela Santa Casa de Santos, encaro-a com carinho e sinto-me em enorme débito para com ela. Um débito que, se Deus quiser, ainda pagarei antes de morrer. Ou melhor, amortizarei, já que uma vida não tem preço.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 31/05/2009
Código do texto: T1624135
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