Parece que falta um pedaço

Pareceu mentira a invenção de um amigo pra voltar a ser mágico fazendo o telefone tocar pra mim: “estou ligando pra dizer que eu sou um funcionário e tu, escritora”.

Sendo a ligação num final de tarde de uma sexta-feira, e não sendo pra tomar cerveja comendo camarão e olhando as jangadas se aprontando pra gente querer virar pescador; eu muito que estranhei e pensei ele estar tentando fazer uma música que até já existe, mas que talvez ele não saiba ou deu como esquecida: “o nosso amor é tão bom, o horário é que nunca combina; eu sou funcionário, ela é bailarina”.

Do dizer dele, eu continuei a falação com um lamento: um lamento que vai passar, diferente de um outro que tenho e sei que nem vai. Lamuriei não ser funcionária, nem de uma editora – que era pra ser coisa perto de escritora –, nem de um salão de dança – que era pra ser perto de bailarina.

No meio do telefonema, que durou muito mais do que meu gosto por falar ao telefone, eu percebi que nem era pretensão do meu amigo ser mágico realmente. O acontecido foi um tino na lembrança dele de que, além de música, eu também gosto de gente, e de conversar, quando me convém.

E quando me convém, de conversas é sempre difícil eu sair, como foi o caso: no lugar da gente ir tomar cerveja no cair da tarde na beira do mar mirabolando virar pescadores – de onde já é difícil sair –, a gente foi parar no interior da Noruega da nossa imaginação sendo artesãos. Voltar da nossa imaginação é muito mais longe.

Acontece que, no dia seguinte, numa outra conversa conveniente, eu e uma amiga descobrimos que nem adianta ser pescadora, ou artesã na Noruega, ou armar redes no sertão, ou fazer fogueiras na serra. Nesses cantos todos pra onde a gente inventa de ir, a gente se leva, e, quando, nem adianta: a dor, de quem a gente peleja fugir, vai junta.

Outra coisa descoberta foi a falta de nome dessa dor. Bem que tentamos encontrar um nome, mas no meio das músicas que a gente ouviu e no meio de todas as histórias que trocamos, ninguém achou o nome dessa coisa que vive em lugar nenhum, a não ser dentro da gente, e que só existe porque é sentida e vai ser até não sei quando.

Aliás, no meio desses últimos dias, rolei tanto nos meus pensamentos que criei um sonho: um sonho onde o telefone tocava pra mim novamente e era o mesmo amigo das invenções mirabolantes.

Lá, ele dizia querer me ser porque eu sou mais eu do que ele, ele. Foi então que me contou estar apaixonado por quem não poderia namorar. Eu solucionei o caso dele com a idéia de ele namorar às escondidas. Desse jeito, ficavam resolvidas duas coisas: a questão do suprimento da paixão e a questão de ele ser o que ele é: uma criança (são geralmente as crianças que namoram às escondidas, ou os adúlteros, mas ele não era isso).

Ele foi tão feliz com essa de acabar dois problemas com uma só solução que se agoniou em nada poder fazer por mim. Perguntou apenas sobre a minha dor.

– Onde está a tua dor?

– Está na mesma fundura.

– E onde está mais doído?

– Na garganta.

– Pois então chora!

– Chorar?

– É... pra desentalar... isso deve ser mais um entalo...

– Mas eu não consigo chorar assim, só porque está dizendo que se eu chorar a dor na garganta vai melhorar...

– Pois então eu vou dizer uma coisa que te faça chorar...

– Mas tem que ser inesperadamente senão eu não choro...

– Tá bom, pois depois eu te ligo...

...

– Alô.

– É a Cris?

– Parece que sou.

– Sabia que o teu avô nunca mais vai ouvir Luiz Gonzaga?

Cristina Carneiro
Enviado por Cristina Carneiro em 25/05/2006
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