Nossas maldades da infância ( Carta ao Deus dos passarinhos)

Deus dos passarinhos, cuja existência não duvido, nesses dias em que a velhice anda junto a mim, as primeiras lembranças da infância me invade todas as noites aos borbotões.

Nesses momentos revejo os olhos sofredores de seus filhos. No tempo em que tudo aconteceu, a cidade tinha ao seu redor campos e matas.

Os nossos lazeres de meninos era feito de banho de lagoa, fazimento e empinamento de pipas, brincadeiras de rela-rela, de pique-esconde, bandeirinha, queimada, peladas no campinho de terra e trave de tijolos, bolinha de gude, bibloquê, betiomba, troca de figurinhas e gibis na porta do cine Lapa, balança caixão-balança-você, boca de forno, pera-uva ou maçã. Não havia naquele tempo bichinhos e jogos virtuais, passeios a shopping-centers e esses outros passatempos de hoje em dia. Entre nossas diversões (?) as temidas caçadas de estilingue era a que provocava terror e desolação entre seus filhos.

Em grupo de dois, três ou quatro e até cinco meninos, embrenhavamos a mata, resolutos, decididos, ávidos para acertar os coitadinhos. Estilingue á mão, bornal a tiracolo levando a munição de pedras arredondadas, o pequeno, porém impiedoso batalhão de guris, se dividia estrategicamente para melhor vasculhar a área. Empregávamos toda a nossa astúcia de guri. Caminhávamos quietos, atentos e concentrados tais quais os soldados que avançam em terreno minado. Seus filhos, cantando ou se coçando nos galhos das árvores , copas dos arbustos, arames de cercas, ignoravam que estavam sendo espiados por nossos perversos olhinhos infantis. Os inocentes sequer desconfiavam da terrível mensagem de morte sibilante, que chegaria em instantes, enviada através de nossas mãos.

Depois de uma mira cuidadosamente feita, a pedrada era direcionada ao alvo.

A pedra cortava o ar como uma cobra voadora, numa velocidade estonteante, indo traiçoeiramente acertá-los.

Muitos certamente morriam sem ter ,sequer, a noção do que exatamente lhes acontecera. Outros com mais sorte (?) feridos dolorosamente na asa, no bico, na perna, no peito ou no olho, despencavam lá do alto ao chão numa brusca trajetória vertical.

Saíamos em disparada aos seus encontros. Olhos ansiosos e mãos impacientes, esquadrinhavamos febrilmente cada palmo do terreno.

Quase sempre estavam no meio da moita, debaixo de um arbusto, no capim rasteiro, acuados ao pé de uma árvore , ou em um outro canto qualquer onde nossa pedrada os fizera cair; alguns se encolhiam temerosos, outros ainda que feridos mortalmente, arrastando, ainda tentavam fugir. O certo é que o mais comum era encontrá-los sofrendo compungidos os estertores últimos da morte.

Os feridos apenas de raspão piavam assustados e tentavam se desembaraçar de nossas mãos, retorcendo o corpo franzino e tentando nos bicar.

Aqueles feridos seriamente recebiam uma cusparada em suas cabeças e eram colocados imediatamente debaixo de uma lata, na qual batíamos vigorosamente com a forquilha do estilingue, tentando ressuscitá-los. Os mortos eram jogados dentro do bornal de pano e prosseguíamos a caçada. Os que sobreviviam passariam a ser inquillinos de gaiolas.

Ao fim do dia, quando voltavamos para casa, emprestavamos da cozinha de nossas mães uma frigideira, óleo, sal, fósforo e farinha. Íamos até o fundo do quintal onde, tiravamos suas penas, cortava-os em pequenos pedaços que temperados com sal era lançado na frigideira com óleo quente. Depois de fritos acrescentávamos farinha.

Estava terminada a iguaria. Pronto, era só comer.

Essas recordações hoje me dói! Porém sou sabedor de que é impossível apagar qualquer passado. Na verdade nem sei bem porque Lhe escrevo, pois sei que não sou merecedor de qualquer perdão que seja. Deus dos passarinhos, do alto do meu sincero e honesto arrependimento, humildemente peço:___Me desculpe! Eu era apenas um guri!