O assassinato da paz e os joelhos feridos

Estudava em Rio Negrinho e um colega quase foi expulso por elogiar a China no jornal mural do colégio. Eram os áureos tempos da “Gloriosa” e pronunciar a palavra “comunista” sem um esgar de ódio capaz de deformar todo rosto era um pecado mortal, literalmente, em alguns o casos.

Ah! O tempo, o que faz o tempo com a história. Ah! O interesse, o que faz o interesse com as pessoas. Ah! A ganância, o que faz a ganância com as convicções. Os mesmos que condenaram, agora ficam de joelhos frente à China e aprendem mandarim...

Nesta semana o massacre na Praça da Paz Celestial fez 20 anos. Na época, escrevi uma crônica sobre o estudante que enfrentou os tanques. Equivocadamente dei até um nome ao personagem principal. Perdi-a, mas tento resgatá-la hoje, como um tributo à coragem, mesmo inconseqüente:

Há um rastilho de esperança que se espalha entre as férteis mentes dos jovens estudantes. Às centenas, aos milhares, como parece fácil na China, mas não é, chegam à Praça da Paz Celestial. Não quere nada de especial, apenas um pouco de liberdade. Chegam os soldados para acabar com tumulto; muitos tão jovens quanto os manifestantes que entoam a “Internacional Socialista”.

Chegam os tanques. Uma figura de camisa branca para no meio da rua. Estanca na frente do primeiro tanque. Os dois se encararam, há uma ordem a ser cumprida, de um lado; do outro, só a louca determinação da liberdade a qualquer preço. O tanque tenta desviar para a direita, move-se o jovem, e lá está, de branco, todo de paz, novamente no caminho. Vários tanques atrás do primeiro. Desvia-se pela esquerda e, em sua frente, de novo, o mesmo fantasma. Um macabro “pas de deux” entre a coragem de um homem e a opressão da máquina de matar. Que idéias movem aquele jovem, anônimo? Que melodias ouve para sua dança? Sabe que nunca ouvirá os aplausos merecidos? E seu compatriota, que guia o tanque, em que pensa? Trocaria de lugar com aquele corajoso obstáculo? Faz uma reverência à coragem, ao menos?

Depois, o massacre na Praça da Paz. Não reeditam a pomba desenhada por Picasso, mas “Guernica”, seu quadro mais tocante.

Foram-se 20 anos, as coisas mudaram, o dinheiro comprou alguma liberdade e os joelhos do mundo se feriram de tanta subserviência. Muito mais do que com o assassinato da liberdade e da paz.