O rei dos engraxates

Como é salutar a gente poder viver bastante e depois recordar-se do caminho trilhado, verificando que, apesar dos obstáculos do percurso, não foi nada em vão e que a gente era extremamente feliz e não sabia. Pois é ! É isso ai. Para melhor compreensão do que vem por ai nas linhas abaixo, devo ressaltar que estou me reportando a uma época distante, aproximadamente 50 anos atrás, na qual não existia ainda a mídia televisiva, implicando dizer que as notícias chegavam, quando não era através de jornais impressos, que chegavam sempre atrasados, vinham também através das ondas do rádio. E foi através da antiga rádio Tupy, que ouvi pela primeira vez a palavra saci. A propaganda nessa rádio informava que a cêra Saci dava um brilho extra aos calçados, além de ser super-econômica. Aquilo soou como um verdadeiro milagre na minha cabeça juvenil de meus 10 anos, que já naquela idade pretendia ajudar os pais, desempenhando algum tipo de trabalho.

Todas as vezes que ouço alguém dizer que a propaganda é a alma do negócio, confirmo a veracidade dessa máxima, recordando-me da influência da propaganda em minha vida, pois, como estava dizendo, foi impulsionado por ela que construi uma Caixa de Engraxar e me dediquei ao ofício de higienizador de calçados(soa melhor). Quase que não precisaria dizer que foi através dessa minha primeira experiência, como engraxate, que construi também o alicerce básico que mais tarde me faria um vencedor na vida. Anos depois, surgiu uma outra marca de graxa, a Duas Âncoras. Só de uns 40 e poucos anos para cá, surgiu a atual “Nugget”. Esforçava-me muito durante o dia nesse ofício, para que a tardinha pudesse praticar o futebol no Campinho dos Padres, que ficava em frente ao atual Hospital Regional.

Relembro que os colegas engraxates da época que disputavam a clientela comigo, era o meu saudoso primo, Carmo Souza Santana; o Baixinho, cujo nome é, Ruiter Jorge de Carvalho; o Divino Mário Sales, o Negola; o Valdivino Rezende, denominado de Divinho Prêto; o Gentil Colodino e mais alguns outros poucos, cujos nomes me fogem da memória no momento. Hoje, já sexagenário e aposentado, avalio o tanto que me foi útil ter enveredado por esse ofício, que dentre outras coisas, me ensinou que não basta saber fabricar o produto. É fundamental saber explicitá-lo, colocando-o no mercado. Nos primeiros contatos com meu público alvo, os clientes, descobri uma outra máxima nas relações comerciais, “o cliente sempre tem razão”, pois afinal de contas, é ele quem nos paga por algum serviço prestado. Posteriormente cheguei também na conclusão que a gente ao desempenhar determinada função, em qualquer tipo de atividade humana, tem sempre que acrescentar algo mais, ou seja, realizar sempre mais além daquilo para o qual estamos sendo pagos para fazer, pois é justamente esse algo mais que faz a diferença e que nos torna mais solicitados, ou melhor dizendo, os mais procurados para exercer determinada função laboral.

Recordo que na minha infância, passada na cidade de Jataí em Goiás, atendia pelo apelido de “Muriçoca” e era um moleque serviçal, honesto e bem disposto. Dedicava-me com muita presteza e eficiência na arte de zelar dos calçados alheios. Quando notava que meu cliente estava com algum problema, logo dava um jeito de me disponibilizar tentando ser-lhe útil na solução do mesmo. Por isso eu fazia a diferença e era sempre bem solicitado. E não foram poucas as vezes em que estava higienizando os sapatos de alguém que de repente era utilizado para fazer outros serviços, como por exemplo, ir aos correios despachar alguma correspondência, ou mesmo, buscar alguma encomenda, descontar cheques em bancos, comprar algum remédio e etc. Quando chegava dessas empreitadas, geralmente me vinham com mais alguns pares de calçados a mais, tentando me recompensar pela eficiência nos serviços prestados. E assim procedendo, fui ganhando a clientela e deixando os outros colegas de ofício para trás, sem que ficassem sabendo o motivo de tanto sucesso. Muitas vezes ficava com pena dos meus concorrentes que eram filhos de pais pobres, como eu, e também precisavam ganhar alguns trocados. Às vezes, quando sabia que determinado cliente tinha algum serviço bom para mim, eu os convidava para me ajudar, ensejando que ganhassem também. Agindo dessa forma, conseguia manter o respeito de todos, pois afinal, estava dando um típico exemplo de como dividir os frutos. Hoje, com todo o preparo e experiência que julgo ter , se, por um motivo ou outro, precisar de trabalho, retornarei, sem constrangimento algum, ao antigo ofício de engraxate, provando à todos, que quem foi rei, nunca perde a majestade.

Amarú Inti Levoselo
Enviado por Amarú Inti Levoselo em 27/05/2006
Reeditado em 27/05/2006
Código do texto: T164303
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