O Cabelo e o Milagre

Este é um dos muitos “causos” ocorridos em mais de dez anos, trabalhando numa loja de rações na periferia de São Paulo. Tarefa árdua, às vezes quase insuportável, mas muitas vezes divertida também.

Era uma daquelas tardes de sol quente, poucas pessoas na rua, pouco dinheiro no caixa, nada de importante para fazer, e eu ali no balcão, rabiscando uns desenhos num papel e pensando seriamente em cortar meu cabelo. Naquela época meu cabelo estava quase chegando à cintura e meus colegas de faculdade cismaram de me chamar de Jesus.

Não que o apelido me incomodasse, mas estava ficando chateado de toda hora ouvir alguém gritar quando eu passava:

-E aí Jesus! Vê se corta esse cabelo!

Nunca me achei parecido com Ele, mas comecei a ficar preocupado quando a fotógrafa do bairro me pediu para eu ser modelo numa foto, enrolado num lençol e com a barba por fazer. Notei também que algumas velhinhas mais beatas suspiravam quando eu as atendia. Mas a gota d´água foi o que aconteceu naquela tarde.

Um homem, um tanto afobado e de olhar preocupado, entrou na loja segurando uma pequena caixa de papelão e foi direto falar comigo:

-Boa tarde. Me disseram que o senhor “entende de cachorro”. Não dava pra dar uma olhadinha nesse filhotinho?

Espiei dentro da caixa que o homem segurava e um pequeno cachorro me olhou com um par de olhos arregalados. Não sou veterinário, mas com os anos de experiência no ramo podia afirmar com toda a certeza: aquele cachorro estava apavorado.

-Mas o que o animal têm afinal? Perguntei a ele.

-Não sei não senhor. Só sei que ele não anda de jeito nenhum. Está aleijado o pobre bichinho e minha filha já está até doente por conta disso. Será que não tem um remédio ou alguma coisa que se possa fazer?

Falei para o homem que eu não era veterinário e que ele deveria procurar um, mas não adiantava. Ele tinha fé que se eu desse uma olhada no bicho, poderia dar uma dica do que fazer pra ele melhorar.

-Então o senhor ponha a caixa no chão para eu olhar - falei eu já um pouco contrariado.

O homem colocou a caixa no chão e o cachorro lá dentro continuava imóvel. Cheguei mais perto e lentamente fui com minha mão para pegar o animal.

O danado ao me ver pulou como um raio de dentro da caixa e fugiu desembestado para a rua. O homem me olhou incrédulo e saiu atrás do cachorro gritando:

-Ele não andava, eu juro! Ele não andava!

Me apoiei no balcão, de cabeça baixa pensando comigo mesmo: - Será que também estou fazendo milagres de tanto me chamarem de Jesus?

Nisso entra uma menininha na loja e me vê assim cabisbaixo. Ela se aproxima de mim. Eu levanto a cabeça, afasto o cabelo do rosto, olho para a menina e ela me diz com ar de surpresa:

-Você é homem! Com esse cabelo achei que era uma mulher!

Definitivamente, era hora de cortar o cabelo.

Marcelo Kbral
Enviado por Marcelo Kbral em 30/05/2006
Reeditado em 08/07/2008
Código do texto: T166079