A MÔÇA DO ACORDEON

18.04.2003 - Sexta feira da Paixão.As tradiçoes herdadas de meu pai fizeram-me despertar muito cedo e antes que o sol nascesse,colhi algumas ervas de cheiro.Durante os anos de nossa convivência lhe vi assiduamente cumprindo este ritual.Colhia as ervas, ainda orvalhadas, as colocava cuidadosamente em algum lugar da casa e aquelas que ainda restavam do ano anterior, eram incineradas.Acreditava êle que as plantas colhidas nestas condições e neste dia,traziam nas seivas algo de bendito e assim , com poderes de curar ou afastar os males.
Veio-me à lembrança as manhãs de sexta feira santa.O ar daquela casa ,embalsamado de alecrins.A cesta de vime repleta de marcelas do campo.A miudez daquelas flores ,de um amarelo melancólico, conservando ainda um pouco do frescor da madrugada.E lá estava êle,em sua cadeira.Nas mãos a cuia de chimarrão,o jeitão caboclo,e naquêle olhar algo de solene esperando que eu lhe pedisse a benção.Embora isso fosse um hábito,costumava ter naquêle dia um significado especial;vinha carregado de um respeito tão profundo,uma força interior tão intensa que nos tornava ainda mais unidos.
Hoje visitei o seu túmulo;e naquele silêncio procedemos a uma prestação de contas.Eu a lhe afirmar que mantive a tradição das ervas colhidas antes do nascer do sol;êle a me abençoar como sempre o fêz ao longo de sua existência.E foi envolvido naquela paz infinita que começei a vagar pelo campo santo observando aqui e ali, placas, datas e nomes daquêles que se foram.Uma delas,bem ao fundo proxima aos cipestres que cobriam o muro despertou-me a atenção.A jovem mulher da foto na placa de bronze,dedilhava um acordeon.Aproximei-me da lápide e o olhar penetrante daquela môça de cabelos encaracolados portando o instrumento musical mostrou-se meu velho conhecido.Inclinei-me,e então,o seu nome:Elza de Oliveira Ribas,a "dona Elza",professôra que fora durante longos anos nas escolas de meu bairro.Subitamente,uma volta no tempo,e lá...
"Adélio e Labibe",seus pais...O carinho com que falavam dos filhos,em especial de Elza,a que era professôra!A pequena venda de seu Adélio,os balcões envidraçados repletos de guloseimas.Dona Labibe retirando do forno à lenha,suspiros deliciosos que ela mesma preparava.A rua do Fomento estendida em sua calma com poucas casas onde moravam "compadres"que cultivavam o hábito de visitarem-se.A pasmaceira dos galos cantando pelos quintais e carroçeiros chegando para "um gole" na bodega do Adélio.O tempo não apaga nossas melhores lembranças;torna-as embassadas,empoeiradas apenas,bastando uma ligeira sacudida para que retomem o viço de seus tempos.Aquela foto resgatou-me os ecos do acordeon de dona Elza vindos daquela sala com paredes repletas de fotografias e onde sofás e tapetes tinham cores alegres.Fez-me rever o balcão envidraçado da venda e atrás dêle,dona Labibe servindo os fregueses com a sua simpatia e a doçura dos suspiros,carregando nos olhos profundamente azuis,o orgulho da mãe da normalista;"A que tocava acordeon".