MEMÓRIAS DO GALPÃO

Quando a tampa da desbotada caixa de chapéu "Ramenzoni"fôra removida,o que estampou-se em seu interior fora bem mais que a dezena de peças de cerâmica representando as figuras de um presépio;ali estava uma história com quase meio século,preza àquêles bibelôs,alguns já mutilados pela ação do tempo.
De setembro restavam apenas os ultimos dias e a mansidão fina e chorosa da chuva no telhado emprestava ao ar uma qualidade de pureza;e nessa atmosfera de purificação, o môfo emanado das quinquilharias no galpão,sucumbia à uma acridez,quase nostálgica,que o vento recolhia das laranjeiras em flor.
Nada melhor que uma tarde assim para travar-se um reencontro com o passado,seus personagens,suas histórias...Um famoso escritor brasileiro escreveu em seu livro de memórias,que:"Nenhum adulto,por mais que se esforçe,jamais conseguirá livrar-se completamente do menino que um dia foi".
Sábias palavras!Um perfeito "achado"a quem conserva a memória permeada de trechos de vida,minúcias de fatos distantes que se vão armazenando em boas recordações.
Agora eu me encontrava ali,naquêle galpão.Diante de mim,relegado ao escuro e empoeirado abandono do ambiente:o velho guarda roupa;de um verniz ordinário.O espelho retangular apresentando uma fenda na parte superior,insinuando resguardar por detrás da moldura,algumas caras soterradas pelo tempo (outras pela propria terra),que me foram bem familiares em épocas passadas.
Dona Dida,minha mãe,foi cabeleireira...Exerceu o seu trabalho num tempo em que os modismos de então requeriam o uso de malcheirosos líquidos de permanente,laquês e as famosas loções "Pindorama e Negrita"" para o tingimento dos cabelos.Um dos compartimentos de nossa casa foi escolhido para o que se imaginava um "Instituo de Beleza".Algumas cadeiras ladeando as paredes,prateleiras com os produtos,a mesa redonda repleta de bigodins,e num dos cantos:o velho guarda roupa.Aproveitado que fora, em função do seu grande espelho,e diante do qual,miraram-se centenas de rostos;alguns bem afeiçoados,outros nem tanto,oriundos dos mais distantes e diferentes lugares,sempre na busca da tão sonhada beleza.Em muito pouco tempo aquela saleta transformara-se numa espécie de consultório;e era debaixo da tesoura de dona Dida que os corações rasgavam-se em confidências e revelações íntimas,como se muito além da cabeleireira,fosse a minha mãe uma conselheira,uma psicóloga,aquela a quem se podia confiar sonhos, problemas,histórias de vivências...
As circunstâncias ,no entanto,lhe haviam privado de grandes conhecimentos ;o que a natureza compensara dotando-a de acentuado carisma que lhe fazia querida por todos,e era valendo-se desse aparato humano que ela reservava a cada caso,conselhos ou sugestões,por vezes hilariantes,porém,capazes de promover acordos,reconciliações,enfim,soluções para as mais variadas narrativas.Em certas ocasiões a saleta era tomada de freguesas e comadres que achavam-se também no direito de opinar sobre os relatos que ouviam,e assim,conseguiam transformar o ambiente num verdadeiro pandemônio.
Havia a clientela "vinda de longe",a quem eram servidos lanches e refeições por conta da casa,de onde se pode deduzir uma das razões do salão trabalhar sempre no "vermelho".Ainda que,algumas dastas pessoas "de longe",adentrassem abraçadas a embrulhos de conteúdos os mais variados possíveis.Assim, bolachas caseiras,requeijão, geléias, leite fresco , torresmos e galinhas surgiam como brindes generosos à cabeleireira.
Foram tantas as vidas que sentaram-se naquelas cadeiras,narcisaram-se naquêle espelho,envolveram aquela saleta com as mais diferentes histórias.Lembro-me de uma ,bastante curiosa,ocorrida já quase ao final das atividades de mamãe.Não me recordo com exatidão,mas devia ser início dos anos oitenta.O mundo anestesiara-se à grandiosidade e beleza de imagens do casamento de Charles e Diana.As moçinhas sonhadoras de então haviam submergido num mundo de sonhos por onde carruagens,flores,desfile, familia real e em especial a figura magnifica de Lady Diana povoavam-lhe as cabeças.E foi uma destas tantas sonhadoras envolvida em seu doce romantismo que adentrou à saleta de dona Dida.Uns dezeseis anos era o que aparentava.Os olhos esverdeados e brilhantes lucilavam em sua altivez.Muito bem falante,tomou assento e foi pedindo um corte de cabelo "igualzinho ao de Lady Di"...
Triste desenrolar de história!...De um lado a jóvem imaginando sair dali transformada numa sósia da princesa;do outro,a modesta cabeleireira,acostumada que era tão somente a envolver cabeças em doloridos bigodins,besuntá-los em nauseabundos líquidos,cumprindo o lema de seu profissionalismo:"Atender bem e satisfazer o desejo da freguesia".E assim ,convicta de estar desempenhando um bom trabalho,deslizou pente e tesoura nos cabelos da jóvem,que para seu delírio obteve um resultado final estarrecedor e infinitamente oposto às suas aspirações.
Mas,voltemos à caixa de chapéu;estas lembranças me ocorreram porque a mesma encontrava-se sobre o abandonado guarda roupa que mencionei.Tinha eu,então,de nove a dez anos de idade.Proximos a nós moravam os "Zainedim".A única maneira que hoje me ocorre para tentar defini-los é lhes denominando:"Adoráveis quarentões da rua do Fomento".Hospedeiros perenes da alegria de viver.O sorriso largo e sonoro da dona da casa justificava o fascínio que exercia sobre as pessoas;o esposo,de origem asiática,trazia safiras nos olhos iluminando as bochechas de uma cara gorducha que esbanjava bom humor.A casa que os abrigava era de uma simplicidade festiva,transparecia em suas formas o aconchego de um ambiente ungido de hospitalidade.E quando ia se aproximando o natal,nós,a píazada daquela rua,éramos convocados e uma carroça nos conduzia em busca dos musgos,das bromélias,das pedras envelhecidas...Sentados no banco da carroça,o casal;ao lado um farnel para o lanche na mata e no tabuado esparramava-mos nossa alegria,nossa ingenuidade...Acompanhando a comitiva,"Tigre",um cachorro amigo.Retornava-mos felizes e cheios de expectativas,antevíamos o brilho da árvore de natal,o presepio exuberante!
Aquilo era realmente muito bonito e acabei decidindo que na minha casa deveria tambem existir um presépio.A simplicidade e o encanto daquêle tempo,retomam níitidamente os seus lugares nos tempos de agora .Então, fechando os olhos, vejo-me em férias escolares!...Dezembros quentes descortinando-se em céus infinitamente azuis;sonhos de menino amadurecendo no peito e ameixas no quintal.Cheiro de pomar,trinados de sabiás abrindo frescor de manhãs e lacrando tardes amenas quando escondia-se o sol e na beira do riacho,mãos empunhavam varas de pescar."Papai,caboclo conhecedor da natureza,costumava dizer-me:Em dezembro aparece o "sabiázinho da guabiroba"...Eu achava engraçado agora compreendo a sutileza e o lirismo da sua percepção.O tempo e a idade vão nos fazendo detalhistas,observadores.Hoje rendo-me àquela constatação.Quando finda dezembro ( aqui no Sul)torna-se muito raro ouvir cantigas de sabiás.Em tôda casa de suburbio havia sempre um rádio ligado(acho que ainda continua assim).A nossa não fugia à regra e dentre tantos acordes escancarados pela vizinhança,recordo-me do conhecido anuncio das casas Pernambucanas. Aquêle coral endeusado entoando:"Dezembro vem o Natal,e os presentes mais bonitos as lembranças mais humanas,aos seus entes queridos todos vão buscar...nas Pernambucanas...E que em todos os lares a paz seja total com os nossos votos de um feliz natal!..."
Aquela harmonia ,quase apelativa, de vozes tocava em meus sentimentos fazendo-me sentir entre amigos e familiares.Entre sorrisos de alegria,trocando todos os abraços que nunca ganhei.Na verdade,nada também daquela loja famosa,meus presentes de natal nunca iam além de modestos carrinhos ou gaitinhas de boca que o "bom velhinho" costumava deixar debaixo da minha cama.Mas aquêle clima colorido de fim de ano,a música do anúncio e a festa dos Zainedim aguçavam o sonho do presepio em nossa casa.Como conseguir?O jeito era vender as ameixas do quintal;necessitava de dinheiro,afinal era preciso adquirir as peças daquêle presepio exposto nas vitrines da rua dezenove.
Quantas lembranças!Os meus primeiros fregueses na vila operária da olaria São Francisco...Duas fileiras de casinholas caiadas ladeando a estrada de chão batido.Espirais de fumaça erguendo-se das chaminés,janelas que se abriam enquadrando rostos amigos.Ecos embassados e distantes de pequenos diálogos:
_Quero uma dúzia,menino!...Escolha frutas bem maduras...
_Uma,duas,tres....doze.Pronto,uma dúzia;esta vai de "inhapa".Escolhia a mais viçosa das frutas e oferecia ao comprador.Retribuiam-me com sorrisos;branquejados alguns,desdentados e temerosos os outros,mas ambos obedientes aos comandos dos corações.Disfarçava não ouvir ao meu redor comentários que vinham num tom meio lisonjeiro:
_Ameixas do pomar dêles!
_De quem está falando?
_Dos Teixeira.
_Ah!.sim,da dona Dida,a cabeleireira,aquela que mora perto da ponte!
Saía apressado;nos bolsos,a recompensa pelo meu trabalho,os quinhões que pagariam o presépio e uma satisfação interior que não sabia muito bem entender naquela época.Agora estou certo de que aquelas pessoas ajudaram a escrever uma singela história de vida num tempo em que os meus sonhos imperavam numa estradinha solitária entre os braços franzinos das araucárias e seus arpejos ao vento,ouvidos que eram pelo silêncio aramado das cêrcas e o entranhado sabiá,cantor de dezembro,insinuando em gorjeios,que os sonhos ainda que nos pareçam impossíveis,são alavancas para a felicidade.
Tornou-se desde então,um hábito montar o presepio todos os anos num dos cantos de nossa sala.Depois,decorrido o tempo,as peças eram cuidadosamente embaladas e guardadas naquela mesma caixa de chapéu.Porém,uma estranha sensação de amargura vinha nestas ocasiões;era como se alguém a quem muito queríamos estivesse nos deixando para só retornar um ano depois.E assim a cada natal que passava pequenas marcas apareciam em nós.Alguns fios de cabelos brancos a mais nas cabeças,ausências de amigos e entes queridos que partiam,parte das peças de cerâmica que iam se quebrando...Enfim,objetos e vidas desgastando-se,acompanhando a cronologia do tempo.Interessante como certas coisas,certos objetos,tem o poder de nos prender à divagações,de guardar tantas etapas de nossas vidas,tantos pormenores.O tempo que reservei a mim,neste lugar,fez-me retornar às raízes,àquilo que sempre fui:sonhador,saudosista,meio alienado,talvez.Mas de bem com a minha história,com o meu jeito de ser...Cuidadosamente fui recolocando a caixa sobre o velho guarda roupa.A chuva persistia de manso pelo telhado e a umidade do ar,recolhia meio tímida aquela acridez quase nostálgica das laranjeiras em flor...


26/09/2003 17:41