Trocando as Lentes

Não adianta: sempre nos pegamos a criticar os outros, seus modos, sua postura, as roupas, o modo de pensar e agir...

Mas é preciso, de vez em quando, olharmos as coisas pelos olhos alheios, para sentir o que o outro sente. A isso damos o nome de empatia.

Por causa desse modo de pensar me aconteceu algo incrível, que não me posso furtar de compartilhar.

Era uma tarde fria, dessas em que a melhor atitude é assistir a um filme, comendo pipoca ou ler um livro com um bom cabernet souvignon na taça, ao lado da lareira. Frio cortante contrastando com o calor de dentro, obviamente causava o embaçamento dos vidros da janela, dando ao ambiente um ar bucólico, nostálgico.

Mas não segui a lógica. Ao ver na rua um papel solto ao vento, decidi que não poderia ficar ali, contemplativo, que então deveria sair e acontecer, seguindo a letra de rimas fáceis, quem sabe faz a hora, não espera acontecer, do Vandré, sai, corajosamente, enfrentando o vento gelado.

Devia estar mesmo muito frio, pois apesar de bem agasalhado, meus dentes rangiam com o vento que me atravessava.

No terceiro quarteirão vi sentado no chão, ladeado por caixas de papelão, um mendigo, encolhido de frio. Pensei rápido que melhor seria não olhar para não ver sua condição degradante. Apressei mais ainda o passo.

-- Moço! Gritou o infeliz.

Ignorei.

Nova súplica e, de soslaio, quase que com desprezo, fiz sinal com a cabeça, fingindo uma certa indiferença.

-- O senhor tem alguma coisa para eu comer? Perguntou o inconveniente ser andrajado.

-- Nada! Falei desanimadamente, mas agora olhando o sujeito de baixo para cima.

-- Espere ai! Pensei e, ato contínuo, pedi que me acompanhasse até um restaurante uns dois quarteirões adiante.

Ele acompanhou e eu fiquei mudamente me lamentando de ter tido tal impulso, pensando que ele me esfaquearia na primeira oportunidade para roubar meus pobres tostões, e que tudo isso era uma loucura, e que eu estava sendo inconsequente.

O homem caminhava com certa dificuldade, mas não exprimiu uma frase sequer, nenhuma palavra. Tomou o cuidado de me seguir a uma distância segura e, duas casas antes do restaurante, parou. Entendi que me esperaria lá mesmo.

Comprei uma marmita, do tipo conhecido de papel alumínio, e entreguei-a ao homem. Agradecimento mudo. O homem não avançou na comida como se poderia imaginar, ao contrario, esperou que eu me afastasse e na mesma distância segura seguiu atrás de mim.

Não tive coragem de olhar os olhos dele, mas havia algo que me puxava a atenção na direção do mendigo, inexplicavelmente esperei que ele me alcançasse, o que demorou longos dez segundos.

-- Eu sei o que o senhor está pensando, mas não se preocupe, não vou machucar o senhor. Disse o homem roto, chamando meu olhar com o seu.

Temeroso, olhei, ainda sem ver direito, mas olhei, e o que meus olhos testemunharam foi inesquecível!

O homem não era exatamente um mendigo, como eu supunha, nem estava andrajado. Na verdade usava roupas distintas, limpas e até cheirosas, minando minha percepção do que eram os andarilhos de rua.

E lá estava ele na minha frente, convidando para almoçar, e inexplicavelmente eu aceitei. Por um momento pareceu-me a coisa mais natural do mundo, por isso não fiquei desconfortável, sentado no banco da praça, comendo com os mesmos talheres do homem, como se fossemos irmãos, amigos.

Depois de algumas garfadas já me sentia plenamente satisfeito, saboreando o alimento com prazer indizível, conversando fluentemente com meu anfitrião, como se fossemos velhos conhecidos.

Contamos piadas, rimos, falamos da vida, das frustrações, dos sucessos, de política e futebol. Afinal tínhamos muitas coincidências, e exatamente dominado por essa experiência inusitada resolvi olhar o homem desarmado, olhando e vendo quem realmente era o enigmático convivente.

Ele era eu, eu era ele.

Fiquei atônito! Eu estava vendo eu mesmo, como se fosse um espelho, com os mesmos costumes, vícios, manias e até as mesmas cicatrizes, a mesma covinha na bochecha, o mesmo brilho no olhar.

Olhei para mim mesmo e vi os andrajos, senti meu cheiro, de sujeira acumulada desde há muito tempo, o suor e a poluição depositada sobre mim, durante meses. Percebi que eu era o mendigo e o mendigo era eu.

Trocamos os papeis, trocamos, nesse instante, as lentes de ver o mundo.

Pessoas passavam por mim agora e eu me senti um nada, como se não estivesse em lugar nenhum. Ou melhor, senti que minha presença lhes era incômoda, perturbava-lhes demasiado. Senti fome de atenção e fome de alimentos – e eu tinha acabado de comer o almoço – gritava e ninguém me ouvia. Uma viatura policial passou, ligou brevemente a sirene para me atentar, dizendo, pelo gesto, que eu me afastasse dali.

Passei a procurar qualquer coisa no lixo, eu fazia parte dele, cheirava como ele, parecia com ele. Eu era o lixo.

Esse torpor durou um certo tempo, até que me despertou um galho de árvore batendo no vidro embaçado da janela. Lá fora um mendigo remexia a lixeira.

-- O almoço está pronto, venha comer – gritou alguém lá da cozinha.

Quentinho, no conforto do meu lar, almocei tranquilamente. O mendigo, lá fora, tremendo de frio seguiu seu rumo, indiferente às minhas ponderações.

Almir Ramos da Silva
Enviado por Almir Ramos da Silva em 02/07/2009
Código do texto: T1678778
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