O VELHO GATO

As manhãs de domingo cheiravam a "glostora" no pátio da casa de seo José.Alinhadíssimo,meu avô materno apertava o nó da gravata enquanto a parelha de cavalos sãinos;vermelho e petiço,atrelados à carroça aguardavam pacientemente o solene condutor.
Em seguida êle surgia na porta dos fundos,em seu terno de linho,os poucos fios de cabelo besuntados em expêssa camada de brilhantina;um violão nas costas e um caixote em formato de estojo de sanfona levando em seu interior um dos tantos galos índios que possuia.Seguia para as rinhas de brigas de galos onde a pobre ave enfrentaria o massacre enquanto êle viveria alguns de seus momentos de glória,brilharia entre a companheirada, amantes da macabra diversão a que denominavam (há quem ainda denomine)"esporte".
Vovó,extremamente cuidadosa,vinha logo atrás dando-lhe os últimos retoques acompanhando-lhe até a carroça num frenético bater de escovas pelas costas,dedilhando um rosário de recomendações que eram gentilmente ouvidas,jamais acatadas.
Diz-se que vovô sempre fora um boêmio;dedilhava com esmero um violão,porém,massacrava Noel Rosa e Orlando Silva em suas serestas já que a habilidade com as cordas do pinho mostrava-se inversamente proporcional à qualidade da interpretação que segundo consta;era desastrosa.
Consta nos relatos dos mais antigos que meu avô foi um bem sucedido comerciante numa localidade do interior.Os negócios iam de vento em popa até o momento em que aprecera por aquelas bandas um certo cunhado de nome: Mário.
Sem eira nem beira,boêmio inveterado,Mário dêstes tipos que correm o mundo,aventuram-se,desaparecem e de repente surgem do nada,surpreendem...Sempre ouvi nas rodas de conversas de minha família,a citação:"Coisas do Tio Mário" referindo-se a uma e outra peripécia originada pela criatura.
Viera para uma breve visitinha ,uma ligeira temporada na casa do cunhado bem aquinhoada na vida.Apesar daquêle seu jeito pouco ortodoxo de levar a vida,possuia um certo carisma e todos lhe queriam bem.Era alegre,brincalhão e cheio de dotes artísticos.Dono de impressionante habilidade com os pincéis resolveu a título de cortesia dar uma melhorada na pintura da casa de comércio.Seu trabalho resultou num belo acabamento em dois tons de amarelo ,portas e janelas em marrom,cores vibrantes que faziam sobressair o casarão entre o verde à quem chegava pela estrada de chão.Não satisfeito com o resultado final de seu trabalho, resolveu acrescentar mais um de seus toques pessoais.Por sua inspíração,e sem consultar o proprietário,pintou a figura de um bichano ao lado de letras garrafais com a denominação que escolhera para a casa de comércio.
Nascia naquêle momento o :"Armazém Gato Preto".
Superstição ou não,tudo o que sabe-se é que a partir dai as coisas foram decaindo na vida de seo José.Perdera muito de seus bens,a clientela foi afastando-se e como consequência,vendera o que ainda lhe restara e veio morar nas redondezas da cidade.O lugarejo que deixava para trás dêsde então passou a denominar-se "Gato Preto" cabendo ao meu avô um fardo a ser carregado pelo resto da vida com o apelido de "velho gato";o que diante da conotação que se dá na atualidade à palavra "gato",bem mais que o tom pejorativo de um apelido seria a constatação do óbvio;com os cuidados que seo José sempre dispensara à aparência,à elegância ao vestir-se,êle foi e seria mesmo até agora "Um velho Gato!"...


28/08/2002