Vai seguir teu rumo

Parece que as partículas inteiras do universo e meus inimigos que giram pelo mundo me chegaram ao muro naquela hora... A cabeça pensou o que pôde e o que não imaginava jamais pensar em segundinhos. O gozado foi eu ter saído à tardinha com um pressentimento estranho, como se uma maldade zombeteira meditasse contra mim nos meus ombros!

Eram umas nove e algo da noite, domingo; não estava assim tarde. Atravessei o sinaleiro e a quietude das ruas iludia com a visão de um dia tranqüilo, ou melhor, noite tranqüila. Um silêncio inabitual para mim, como se toda aquela quietude fosse indício de perturbações. Os carros passantes, o sinaleiro, sinal vermelho... Carros sumindo, os arredores e transeuntes desvanecendo, as coisas tramando para me assustarem e eu ficar sozinha ali no momento!

Sangue manchando tudo, polícia por perto, gente vasculhando meus pertences e outros procurando meus documentos... eu ferida, corre-corre, ninguém culpado, ninguém presenciara a cena... alguém de idade mediana surrado de suor do lado de dentro de um boteco contando meu dinheiro e aliviado por ter conseguido a façanha de me ferir e sair intacto, sem retrato-falado...

Eu que me pensei ser um “gato de sete vidas”, agonizando ali sem eira nem beira, de qualquer jeito, feito um porco sangrado, sem reação, pega de surpresa, cortada... Não! Fora apenas o susto de um estilete na mão de um garoto sem teto, desses que cheiram crack...

Balancei a cabeça num tom afirmativo, andei para frente, rumo à minha casa. O garoto correu com os trocadinhos que estavam no meu bolso em direção oposta. Um estilete e uma ameaça, um olhar fixo e uma esmola... frieza de ambas as partes na hora exata.

- Entrega tudo aí ou morre! – e cresceu o estilete em direção a meu pescoço que tanto amo; em seguida eu apertada contra o muro. Época de calor, o termômetro marcando trinta e dois graus, órgãos fritando às custas da adrenalina do corpo. Truques de sobrevivência me fazendo permanecer fria e encarar aquele bandidinho criado pela ignorância da sociedade.

- Certo! Leve tudo!

- Tu tem um celular novo no bolso, porra! Pensa que num tô venu? – E estilete encosta mais perto da minha veia grossa...

- Vamos fazer assim, leva a grana sem problemas e deixa o celular comigo, cara! Tem foto demais de gente que amo aqui dentro. Uns já faleceram e tal... – Mostrei as fotos para o garoto que me furtava. O desarmei com a conversa.

Eu sei que a grana que ele pegou comigo foi usada para manter algum vício, mas, por fim, fizemos uma camaradagem. Acabei demonstrando-lhe que aquilo se tratou de “esmola” que o dei e que ele teria sido alguém com quem dialoguei. Ele ainda me confessou que havia muito não conversava com uma alma sequer, porque onde chega todos correm e fazem alvoroço, que ele tem cheiro ruim e daí para frente. Contou-me de uma guria que ele observa há um tempão, das redondezas, gente da alta, amor platônico. Em alguma parte do diálogo, ele me disse que quando se assalta alguém não se pergunta a esse alguém se ele tem família ou é responsável por alguém; então disse que tem medo disso. Medo de si próprio e da própria natureza. Natureza uma ova, essa natureza à qual ele se referiu é maquiada pelos vícios e pela crueldade de quem ignora a miséria!

Assaltos acontecem a cada segundo em grandes cidades, como acontecem os acidentes, as discussões, os amores e os bons encontros. Graças a Deus que pude sair para ter um final feliz e contar o fato à posteridade. Pode ser que eu cruze com esse garoto ruas afora por aí, mudado para melhor ou pior. Pode ser que nos vejamos e não nos reconheçamos, ou um de nós reconheça o outro e evite contato. Eu preferiria vê-lo com um avental, servindo de garçon, ou atendendo em alguma mercearia, quem sabe almoçando num restaurante universitário.

Isso é relato de um assalto que preferiu ser chamado de “esmola”, gente! O conselho que dou é para não tentarem ter a frieza que eu tive com a abordagem do guri, o qual prefiro não chamar de “ladrão” ou “pivete”! Pode ser que ele não tivesse experiência no ramo; eu também não tinha experiência em ser assaltada à mão-armada, melhor dizendo, com estiletes no pescoço. Muitos são os ladrões e muitas são as vítimas, por vezes fatais! Os impostos e tarifas nos encurtam as expectativas diariamente se pensarmos; os responsáveis nunca são punidos. Só que isso rende mais contos e crônicas e debates, né?!

Grande abraço! E pense como disse aquele guri sem rumo na vida: “não olhe para trás, vai seguir teu rumo”!