Um lance de amor

Olho para a rua da janela do terceiro andar. Em frente à lanchonete há uma mesa e uma menina ocupando a cadeira. Não, ela não tem mais de doze anos. Toma o lanche com a satisfação de uma pequena divindade, com a face transluzindo o mais sereno dos contentamentos – aquele a que os humanos deveriam ter o direito de experimentar ao menos três vezes por dia.

De repente, do outro lado da rua, um serzinho trôpego é apanhado pela minha visão. Ele quebra a presença nutritiva da garota. E a minha observação, também. Como numa combinação silenciosa, sorrateira, o olhar da criança e o meu se fundem no corpo daquele pequeno animal. O que lhe teria ocorrido? Está claudicante. Algum gorducho desavisado pisou-lhe a perna? Foi uma bicicleta insensível que a partiu? Ah... o pneu de um carro assassino estiolou-lhe o "fêmur"? Ou terá sido aquele pulo que ele deu do décimo andar a causa de ele, agora, andar mancando para despertar o dó de quem o percebe?

Não cheguei a conclusão alguma, mas meu olhar deixou quieto o bichinho e voltou a fitar a menina. Como que em sincronia, era ela que o animalzinho também mirava, mais precisamente a mão e a boca da infante, como num ziguezague vertical que, suspeitei, poderia hipnotizá-lo. Permaneci olhando a menina, como a cultuar um acontecimento, desses que enriquecem o dia, tão tranqüila e sintonizada com o ambiente ela se encontrava.

Ela, enquanto comia, prosseguia a olhar para o cão. Talvez com maior concentração e intensidade que eu. Terá feito as mesmas indagações que inundaram minha mente momentos atrás? O que lhe desperta o interesse? Será o fato de amizade canina ser a tida por mais fiel? Será a perninha doída do cãozinho? Será a fome dele a lhe roubar o coração?

Outra vez, não me veio nenhuma conclusão, mas permaneci olhando para a mesa, preenchida pela presença soberana de uma menina se alimentando e cercada por um processo de comunicação visual pleno, faminto, genial.

Sem mais, a campainha do telefone me chamou. Apanhei o aparelho, fone na posição de atendimento e eu a esticar o pescoço janela a fora, não querendo perder o desfecho daquele encontro que se desenvolvia lá embaixo. Mas a mesa estava vazia. O cãozinho continuava na posição de antes, fitando a cadeira.

Cadê a garota? Teria se mandado após se sentir satisfeita? Nada disso. Vi a cabeça dela saindo da lanchonete e se dirigindo rumo ao cachorrinho. Na mão, a coxinha imensa. Parecia apetitosa, quentinha, linda. Ela mirava o cão e caminhava, mas foi diminuindo a velocidade de cada passo, como a querer esticar o tempo daquilo que protagonizaria como ato de amor ao mundo e à existência: oferecer alimento a um animalzinho já bastante maltratado pela vida.

O cãozinho, tímido, quase humilhado, mantinha apenas as orelhas em riste. O corpinho rente ao cimento do passeio. O rabinho como que varrendo o chão. O olho canino, contudo, era de grande luminosidade. Luzia como uma lua cheia que abençoa os melhores dos amantes à beira lago, enlevados por ternura e afeto sadios.

Como em câmera lenta, a mão foi se aproximando daquela boca ensopara de saliva. Parecia ar para narina, fogo para fósforo, água para secura. Mesmo assim, lenta e tranquilamente, a boca foi abocanhando a guloseima. Ela se afastou, não sem delicadeza. Ele colocou a coxinha no chão do passeio e voltou a mirar a moça, como a agradecer pelo presente o qual nem sonhava merecer. E, assim, ele foi se alimentando, alternando mordida no lance e olhada na menina, sua benfeitora.

Foi minha vez de me sentir satisfeito. Voltei para dentro do apartamento. Tornei o telefone no lugar de origem, plenamente feliz. Sim, eu tinha testemunhado um momento daqueles em que a reverência à vida sintetiza tudo o que de humano o mundo pode conter. Ter presenciado esse milagre modificou o restante do meu dia.