Quando te Perdi Não compreendi

Quando Te Perdi Não Compreendi.

Outubro se inicia, as flores estouram no mundo anunciando que é primavera, o ar é suave, o dia meio que chateado, mas a vida transcorre sem alardes...

Outubro foi nosso último mês, nossa última vez. Em outubro fomos ao banco, compramos ração pra Sila e o Sultão. Também “como sempre”, dei marcha ré no carro para que tomássemos um “lanchinho”, eis que ela só se lembrava que tinha que parar em algum lugar quando eu já estava lá adiante, aliás, bem adiante. Fazia-me de palhaça com o ar mais inocente do mundo. Pedia-me com “aquele jeitinho”, para que eu furtasse “só uma, uma só mudinha daquela plantinha, olha que gracinha”.

Eu ia, eu ia, cuspindo marimbondos, prometendo, jurando e sacramentando que aquele seria o último delito praticado. Geralmente os furtos eram praticados contra os jardins do Nion. Argumentos ela tinha, e muitos, só pega se for “roubada” , que é que tem, olha o tanto, etc e etc...

Outubro qual milhões de vezes entrei como um raio no quarto dela, mirei a cama e desabei, “dor muita dor, mãe, não agüento, é meu pescoço, ta doendo demais”. Fiz um escândalo, e o escândalo era um pedido amplo geral rápido e irrestrito de colo de mãe, de carinho de mãe, de aconchego de mãe, e a dor nem era tanta. Ela incontinenti correu com a meninada, gritou SILÊNCIOOOOOOOOO, e eu lá, deitadinha , “que bom”. Rapidamente foi fechada a cortina e um lençol bem clarinho e limpinho foi estendido em meu corpo. Dormi e acordei tentando abestadamente entender o que ela dizia, era singelo, era só o que eu queria ouvir. “passou a dor filha?” “ passou, passou mãe” , “então descansa mais...”

Nos outros dias de outubro fomos à AFFEGO, fizemos compras em camelôs, nos esbaldamos no 1,99, coisas que adorávamos fazer, enfim, vidinha normal...

Pra sair era aquela bagunça, eu buzinando, ela abusando, mãeeeeeeee, vamoooossss, e ela na dela, peraí menina, deixa eu me arrumar...batom cintilante clarinho, esmalte idem, unhas de deusa e.... sombrinha.

Lá íamos nós pra tantos lugares.... As vezes uma perguntava à outra, tem dinheiro não? Uns trocadinhos, sim, por quê? Vontade de tomar uma cervejinha bem gelada. Então calma e despreocupadamente, alheias ao mundo ao nosso redor, pois era a “nossa cervejinha”. E dentro deste contexto lúdico, cervejinha, divagávamos, ríamos e chorávamos e tínhamos-nos unas. E eu ouvia atenta sua história , tão triste, o quão pequenina e carente era, o quão carente fora . Falava aos prantos da orfandade, da cidade em que nasceu, Itapeva /SP. Acalentava o sonho de um dia voltar talvez encontrar a irmã que vira pequena e nunca mais. Falava do amor que sentiu por meu pai, da vida difícil mas feliz ao lado dele, das loucuras que fizeram, de quando descobriu-se de mim grávida, da felicidade de ter um filho, de ter que trabalhar lavando roupas com o barrigão enorme até meu pai passar no concurso do fisco. E ela só tinha vinte anos quando eu nasci.

Ríamos e chorávamos da nossa trágica vida. Meu pai assassinado aos trinta e sete anos de idade, meu pai nada prático, eterno e terno poeta, sonhador e idealista, não via no mundo nada além da poesia. Mesmo assim ela sempre o quis e quando ele se foi tomado por dois tiros certeiros e frontais, mesmo estando separados ela sentiu o baque...

Eram assuntos que à ninguém interessaria, e que ninguém entenderia. Só eu via suas lágrimas, fortes, doídas. Eram momentos intensos e densos. Porém tínhamos que ir, colocar as pedras nos bolsos e ver meu deus, a família, a família...

Meio que trebadas íamos, cada uma a seu lar. Já dentro do carro “coloca o cinto mãe”, ela dizia: filha você é o meu esteio, você é tão bonita, corajosa, tem uma pele... Eu era covarde, e muito, minha pele um horror e eu tentava não ser feia...ELA SIM era meu esteio, quente, acolhedora, bela e pequenina, uma formosura....

Amava o Júlio como a um filho. E era, é, por ele totalmente correspondida. O Júlio não tinha defeitos, que marido melhor eu poderia ter, o Julião abusava, deitava na fama...

Quando da minha colação de grau ela foi aos céus, enviei-lhe meu beijo, ela olhou-me como se eu fosse um ser iluminado, ela que praticamente, custeou minha faculdade...

Ela como toda mãe, era um poema, um mimo ao olhar, uma água cristalina, ela era minha mãe, a qual eu nunca tive pejo de me abrir, expor minhas feridas, tampouco ela...

Pequenita, elegante, sapatinhos de boneca, um encanto de se olhar...

Surgiram pequenos cálculos biliares, recomendação, “eis que tinha um dos melhores planos de saúde do Estado AFFEGO”, cirurgia à laser, em vinte e quatro horas, estaria em casa, coisa simples...

Porém ao leva-la, meu coração doeu, dor física, fiquei triste, estranha, eu não queria leva-la, quase voltei. E ela brincando comigo...

Não sei, nunca saberei, algo que foge ao meu entendimento fez com que eu a levasse, uma força inexorável que ainda hoje não consigo entender...

Foi a última vez que a vi brincar e sorrir batendo a pequenina mão em minha perna....

O resto do tempo, dez dias, foi de puro terror dor e pedidos de por favor. Ela dizia dói demais, o distinto argumentava, “MEU BEM TÁ MANHOSINHA”, “VOCÊ ESTÁ ÓTIMA”. Não estava não, mais que a mim própria, eu a conhecia. Pedi a urgente transferência para outro hospital, pedido negado, estava tudo, tudo, sob controle. Não estava não, eu a conhecia, e num átimo de desespero ameacei agredi-lo fisicamente se necessário, mas eu iria sim tira-la dali. Bom se eu assinasse um termo, assinei. Tirei-a de lá...

No outro hospital, direto para a UTI, mais um termo eu assinei, para que se fosse feita a abertura abdominal e assim descobrir a causa e tentar salva-la.

Na UTI quando pela última nos vimos, seus olhos estavam baços e purulentos, os lábios ressecados e feridos, ela tinha sede mas não pude dar-lhe água, molhei um algodão e fui espremendo em sua boca, ela pedia tanto que eu lhe desse água. Queria fazer xixi mas apesar de estar com sonda, não conseguia. Vi em seu olhar dor e desespero... Vi em seu olhar....

E neste pior momento da vida, no mais crucial de todos, implorei aos céus piedade, clemência, que o Senhor nos acudisse, que eu ficasse no lugar dela, eu ficaria feliz e agradecida ao Senhor, porém, o Senhor é o Senhor. Foi quando percebi que não éramos unas. Foi a última vez que a vi, foi ali que também morri....

Portanto, meu coração respinga sangue, o sangue dela que está em mim, por onde passa e em quem encontra..

Não existem mais ilusões, sonhos, aniversários, não existe mais natal nem ano novo, cerveja regada a papos fenomenais não existe mais.

Outubro findou tal qual ela, pois dia 31 completou um ano que não a vejo...

A casa está vazia, as roupas, batons, sapatinhos, o guarda-roupas e Deus, a cama forrada como a espera-la.

A casa, os móveis, os quadros, a sala, a Sila o Sultão as samambaias, tudo está lá, e a janela do quarto dela parece querer criar coragem e perguntar, o que todos querem saber, cadê Joaninha? É engraçado mas toda a casa saudosa dela está.. Cada objeto parece que olha receoso querendo notícias de Joaninha....

Joaninha partiu casa, partiu Joaninha samambaia, partiu Joaninha pessoal e nem diz onde está, são 365 dias de dores atrozes e perguntas sem vozes..

O grito que está em mim e me retesa as fibras, não sai, não sai...

Existe um alguém concreto e abjeto que julgando-se um Deus, ceifou-lhe a vida. Ele nunca saberá, nunca, por mais que viva , que se transforme em Matusalém, não importa, ele jamais saberá, nem o tempo conseguirá fazer com que ele entenda ou sinta todo o pranto e dor que causou a toda uma família, à uma prole...

Quero a justiça, não só a Divina, a terrena também, eis que houve um homicídio ao qual presenciei, sou testemunha ocular do descaso, e da impiedade de “quem não tem a obrigação de salvar vidas, tampouco lhe foi dado o reincidente “agora sei” direito de tira-las, e esta foi tirada, por NEGLIGÊNCIA, IMPRUDÊNCIA E IMPERÍCIA...

Parece que vejo o Júlio entrando, me abraçando e falando devagar, devagar...E Me vejo um vermezinho pequenino e gelado, me deixo levar pelos braços fortes e poderosos do Júlio, e eu só queria o Júlio, a madrugada era fria e o mundo desconexo... Nenhuma lágrima, só os membros não respondiam...

Não quis vê-la morta, inerte, não, e nem poderia....

Só hoje tenho consciência do turbilhão, pois neste um ano morri, feneci, dormi, ensandeci...

Já peguei o telefone para ligar para ela..

Já fui em casa, entrei no quarto dela, para totalmente alucinada perceber....

Fixo o olhar quando vejo mãe e filha naquele mundo feminino e exclusivo onde só cabem mãe-filha, as lágrimas vêm, deixo que elas caiam livremente...

Um beijo minha mãe...

Dorothy Carvalho
Enviado por Dorothy Carvalho em 04/06/2006
Reeditado em 13/10/2020
Código do texto: T169049
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