Feio

Bigode destrambelhado e isolados fios longos e espetados fazendo as vezes de sobrancelha. De um grisalho meio desbotado, entre o branco sujo e o cinza despersonalizado. Manchas pelo corpo e uma barriga desproporcional para seu pequeno tamanho. Pernas arqueadas, como se frágeis para carregar o peso físico e o da personalidade forte e que não admitia desaforos. Dentes, não os tinha todos, mas os que restaram estavam sempre afiados e prontos. Comia qualquer coisa. Unhas que fariam inveja a Zé do Caixão, normalmente sujas.

Sem origem conhecida, sem Certidão de Nascimento, Feio foi o nome/apelido que recebeu. E ficou. Fazia jus, mas só por fora.

Simpatizei-me por ele e, por alguma razão, foi recíproco. Ficamos amigos e comigo aprendeu a tomar banho e “ficar cheiroso”, como diziam a ele depois disso. É verdade que era necessário ficar de olho para que o “cheiroso” não virasse “fedido” num piscar de olhos.

Em alguns períodos, passava grande parte do dia e da noite também, para desespero meu, tossindo. Uma tosse áspera, seca, engasgada. Nunca foi possível curá-la.

À maneira dele, era um grande companheiro. Se eu saísse a pé, fazia de tudo para acompanhar-me, sempre com estardalhaço, talvez querendo mostrar que tinha um amigo. Não sei o que passava em sua cabeça, mas imaginava.

Muitas vezes chato, impertinente, contestador, tinha, entre outros atributos, uma coragem quase insconsequente. Por conta dela, poucos ousavam desafiá-lo e os que tentaram, rapidamente se arrependeram e aprenderam a ficar longe quando o baixinho aparecia na rua.

Pessoas têm conceitos estranhos: um deles é o de manter preso quem se gosta. Um amor às avessas. Com Feio era assim, deixavam-no preso, na ilusão da lealdade sem asas. Também para que sua presença não causasse constrangimentos e sujeiras indesejadas.

Prefiro a lealdade alada, e mantinha-o livre, fazendo-o às escondidas para evitar a dupla condenação: dele e minha.

Foi num sábado pela manhã: ele saiu correndo com uma agilidade exagerada para a idade, anunciando a todos sua euforia. Pouco tempo depois avisaram: “O Feio tá morto, atropelado”. Instantaneamente, as críticas choveram em cima de mim. Tristeza e dever se misturaram e fui recolhê-lo, pois nada mais poderia ser feito.

Emprestei um pouco da euforia dele de uma hora atrás e me senti reconfortado: morreu correndo atrás de um carro e latindo, feliz pelo momento. Morreu feliz. Não é o que buscamos?