Memória é tudo

Fui recarregar o celular porque estava em outra cidade, pois uso chipes diferentes conforme estou numa ou noutra região pelas quais tenho de transitar. Mas eu não sabia o meu número. Lembrei-me que, certa vez, um candidato a poeta entregou originais ao Mário Quintana na redação do jornal em que o escritor dava expediente, e, em troca, pediu a indicação telefônica dele para futuros contatos. O rapaz desejava a ajuda do Poetinha para emplacar publicações, razão pela qual quis trocar telefonemas com o pretenso benfeitor. Porém, Quintana declinou da solicitação de maneira inusitada:

– Não sei o número do meu telefone. Eu não ligo prá mim.

Ter me lembrado desse chiste de Quintana, que, cá entre nós, era uma piada ambulante, amenizou o mal-estar de eu não saber o meu próprio número. Mas o mesmo não se repetiu quando tive de sacar alguns caraminguás para viajar. O tempo estava curto. O carro em que eu tinha de embarcar já se avizinhava. Ir a uma agência do meu banco poderia me fazer atrasar. E, como mineiro não perde o trem – perde todas as outras coisas, menos o trem, resolvi ir a um Banco 24 Horas.

A fila estava curta. Fui logo enfiando o cartão. Uma senha me foi solicitada, além das três letrinhas identificadoras, justo os seis dígitos que, no dia-a-dia, o meu banco não pede, por ter inserido um chip no cartão com o qual faço essas operações. O que aconteceu? Digitei duas vezes os ditos números de maneira desencontrada e o meu cartão foi bloqueado.

Cara, é um negócio para nossa segurança, mas que é estupidamente chato, é. Meu sangue fervia, o tempo corria, o ônibus se aproximava, o taxista me esperava. Corri para o táxi:

– Me leve de volta onde você me apanhou.

Ele tinha ido à casa de um amigo me pegar para me levar à rodoviária, para onde arrancou em retorno com o carro, não sem imediatamente indagar:

– O que aconteceu?

– Meu cartão de banco foi bloqueado. Errei a senha por duas vezes...

Ele olhava à frente para rua e voltava ao meu rosto:

– Xiiii... Hoje você tá, hein? Não foi você que, de manhã, foi lá na minha banca carregar o celular e não sabia o número?

Por um tempo pensei em mandar o taxista às favas, catar latinha – hoje tá raro encontrar coquinho, ou ir pentear macacos. Mas me contive porque, de qualquer modo, a razão estava ao volante:

– O próprio!

O sujeito soltou uma gargalhada como se fosse meu íntimo. Aí foi minha vez de olhar prá ele, que me falou:

– Ainda bem que seu amigo vai sacar prá você... Por que tem de voltar para casa tão cedo? Não ia ficar até seus compromissos aqui terminarem todos?

Aquela vontade de espinafrar o homem voltou com força redobrada. Outra vez, tive de dar o braço a torcer:

– Estou tendo de voltar mais cedo porque fechei um diário eletrônico, na única vez que isso era possível, não podendo retornar para consertar, sem ter lançado as notas dos meus alunos no documento. Agora tenho de ir lá, fazer à mão o tal Diário de Classe. É por isso, entende?

Bom, nisso já havíamos chegado à residência do meu amigo. O que os dois me aprontaram em termos de gozação? A farra que eles fizeram fica por sua conta imaginar como foi. De minha parte, estou preferindo é esquecer.