EXPRESSO PARA LISBOA

O Expresso Porto-Lisboa um autopulman moderno, já aquecia os motores quando chegamos ao terminal, neste caso acho eu um “partidal” mas só para mim, que é feio o termo e então fica assim ; terminal de partida, um paradoxo que todo o mundo entende.

O caso é que o autocarro era magnífico ao tempo, equipado com WC, ar condicionado

televisão, canais de música e rádio FM Stereo, bancos reclináveis, luz de leitura, mesa rebaixavél para refeições ligeiras e mais; uma magnífica hospedeira, à primeira vista, depois se verá, sorridente como vem nos catálogos, amável e eficiente, velando pelos passageiros como anjo da guarda , especialmente por duas crianças a seu cargo a entregar contentes em Lisboa aos pais ansiosos mas confiantes.

Tudo controlado, tudo oferecendo perspectivas de uma tranquila viajem.

Trezentos quilómetros neste soberbo autocarro e com um motorista de ar sereno e experiente dá para ir jantar a horas decentes. Entretanto há a bordo sanduiches, leite, laranjada, etc., meus filhos pequenos ainda, talvez não rejeitem lá para a tardinha.

Setembro ainda ia quente, mas no interior da viatura, o clima (forçado) era já de Outubro , fresco, agradável, ameno.

O bilhete era mais caro do que em outras rodoviárias, mas era um luxo.

Instalados, confortáveis, acenamos um adeus breve à família restante e suavemente o veículo iniciou a marcha lenta que manteve na cidade e na ponte.

O postal ilustrado na memória é aqui autênticado, pelo olhar deste vetusto Porto. A Ribeira

,o Cabedelo a juzante, a encosta dos Guindais, a muralha, a Sé os Clérigos, o Palácio da Bolsa, a Igreja de S. Francisco, o casario, esta mole de granito sólido enfrentando o Monte da Virgem noutra margem mas igual natureza refletem-se nas águas deste rio de Ouro, porque o Douro segregava às vezes pepitas, que se quedavam nas areias do Cabedelo.

Meu Pai perdeu uma que achou nessas areias.

A ponte ferroviária de D. Luís marca a paisagem da idade de ferro nesta urbe, não idade do homem mas na da arquitetura Eifel.

Nesta bacia do rio, corre-me a alma com os barcos rabelos ostentando as velas largas e enfunadas e pipas de PortWine, hoje apenas como cartaz, cumprido o dever antes da linha do caminho de ferro e das rodovias que o escoam hoje.

O comboio penetra no centro do Porto, não sei como, nem como se pendura nesta encosta.

Tudo tão ao alcance da mão, tão tocante que me absorvo como o menino no presépio. Também nasci aqui, esta concha é meu ninho. Minha mulher aqui nada e criada, mais do que eu, ainda tem a mania de verter uma lágrima no rio. Arranquei-a por amor a este outro amor, mas ainda sente. Não tenho ciúmes. Gostamos do mesmo.

Ergo agora num sacudir de memórias os olhos e a mente para o Sul. Lisboa espera-me com a clara atração de moura encantada. Assim fez a muitos; arrastou-os quimérica, eldorada, sonho para um destino que aí se fez fado, partida, saudade esvaída de gente para as sete partidas do mundo, corrente que chegou à Ìndia e ao Brasil e terras de Àfrica.

Ainda embarquei fardado a defender o que restava do Império já caduco, Dele ficou apenas esta expressão que uso e sei pode ser entendida ainda nas antigas sete partidas do mundo por alguém.

Jornais e magazines ao dispor dos passageiros retiram-me destes planos sentimentis de um reviver saudoso, para o mundano o “fait-divers” o actual.

Dou por mim distraído no crepúsculodo dia. O Sol descai a Ocidente derramando no horizonte a sua tinta de fogo. O dia caminha para o fim, mas a viajem vai-se manter muito para além.

A modorra apoderou-se dos passageiros, que um a um com raras excepções passou do tal estado ao do sono mais profundo, esse meio mais veloz de viajar. Ocorre-me ser o único para atingir outras galáxias num abrir e fechar de olhos.

Neste cair do pano negro da noite, algo entretanto afetou a rota, o horário e a nossa posição geográfica.

Sendo um dos raros velantes da noite apercebi-me de uma placa rezando Lisboa 145km. Ora há muito tinha lido outra anunciando 120km.

Extraordinário, o autocarro regredia no percurso! Confuso tentei aclarar a mente ensonada e resolver o enigma. Vagamente recordei luzes azuis de patrulha da estrada há algum tempo atrás.

O autocaro foi desviado do percurso normal devido a acidente! È certo! Aliás esta estrada é estreita e de curvas sucessivas. Estamos em percurso alternativo.

Para além do breu da noite um nevoeiro cada vez mais cerrado abranda drásticamente a marcha do autocarro. O motorista perdeu o ar fleumático, e crava no nevoeiro o olhar cego. Parece inquieto. A hospedeira creio que “apertou o cinto” e vai muda, sem sorriso, sem confiança e sem a inspirar

Estamos perdidos! Emocionante situação que faz sorrir depois de ter circulado em Àfrica , sem rodovias, nem mapas dignos, em distâncias astronómicas, com clima e gente hostil. Mas aqui é diferente vai afamília gente idosa crianças enfim outras latitudes.

Estar perdido é uma expressão com sentido relativo.

Na verdade o condutor não conhece a estrada. Num cruzamento hesitou e optou por uma das vias sem convicção.

O timoneiro vasculhava o negrume na esperança de uma qualquer estrela polar que o guiasse , e ela surgiu, ténue mas crescente de brilho até se revelar um foco brilhante iluminando a escada de acesso a uma moradia. O autocarro imobilizou-se, o motorista apeou-se e entretanto uma fada do lar surgiu na umbreira. O nosso guia perdido, pareceu após breve diálogo retomar confiança. Desceu lesto as escadaria ajustou-se ao volante e arancou mais leve e resoluto.

Após a tal estrela e a fada vindadas da escuridão, o nevoeiro dissipa-se a estrada faz-se larga iluminaa pelos brilhantes faróis e a confiança retoma o ambiente. Tinhamos caminhado para trás mas agora numa marcha veloz apontavamos decididos a essa fugitiva Lisboa.

O sono tranquilo espalhou-se de novo como gás soporìfero no habitàculo. As crianças essas dormiam em regalo e nem viram a estrela e a fada salvadoras e foi pena porque elas gostam de fadas e estrelas e eu confesso também gosto.

O tempo evoluiu do nevoeiro denso para uma chuva fina e constante, mas a viajem decorria agora na comodidade veloz de um verdadeiro expresso.

De súbito a velocidade perdeu-se as luzes também e o autocarro estacou mudo e quedo sob a morrinha da noite de novo negra frente ao portão da falada prisão de Alcoentre.

Lisboa voltava a afastar-se de nós. A questão agora é mecânica e nessa matéria não há fadas dotadas que eu saiba.

E agora?

O motorista com luzes de mecânica mas só com um isqueiro teimoso, permitiu-me brilhar ao sacar do meu saco de viajem uma pilha salvadora, que o não foi, porque a peça avariada não tinha reparação nem havia ferramenta para tal. Neste cenário condutor e hospedeira sumiram no escuro.

O nosso apetite entretanto era já fome, misturada a revolta com o serviço que engoliamos em seco.

O tal serviço de bar tornou-se virtual com o eclipsar da hospedeira. Bolos sanduiches, café ficaram no armário se existiam.

A tripulação afinal terá ido procurar na aldeia um telefone, que existia na tasca- café onde entretanto esgotou o último pão do stock. Ainda tentei a minha sorte mas só encontrei um vazio igual ao do meu estômago.

Junto do autocarro um guarda prisinal bêbado como um cacho propunha-se resolver a situação, era um artista em mecânica, mas quem ia acreditar? É verdade que os grandes artístas têm defeitos e este fugiu à aproximação de um senhor alto de gabardine cintada gola levantada e ar de inspector. Era o Director da prisão. O guarda ilegalmente bêbado rodou em fuga para trás do autocarro, mas tropeçou na bebedeira e caiu na valeta. A força próxima da autoridade do Director fê-lo no entanto erguer-se lesto encharcado agora por dentro e por fora e apontar à taberna sem punição por sorte do escuro.

O Director entretanto clamou em voz de comando pela presença do cndutor do autocarro, que lhe expôs a situação. Não era permitido o estacionamento frente à prisão por razões de segurança por isso o Director chamou o piquete mecânico, mas foi inútil a peça também não existia no stock da oficina da prisão.

O director da prisão colocou dois guardas junto do autocarro e reforçou as sentinelas com guardas ostentando metralhadoras. Meu Deus! As nossas intenção eram tão inocentes! Mas ocorre-me a notícia bem recente que engordou títulos de jornais com uma evasão colectiva de Alcoentre.

Quarenta reclusos de uma vez abandonaram as instalações. O caso teve contornos políticos .

Entendo assim o nervosismo do coronel.

Nós vítimas desta ingrata situação também gostariamos de fugir desta prisão móvel, imóvel à porta da prisão, mas temos de esperar por um novo autocarro que virá do Porto. Deus o guie.

Com fome, cansaço, sono e raiva tudo acondicionado com um tampão de paciência, agurdamos.

Um automóvel veloz aproximo-se do autocarro, travou com certa brusquidão e dele saiu um casal que correu para o autocarro. As crianças à guarda do anjo sem asas que ainda assim voou para largo desta confusão demitindo-se do ser puro, lançaram-se ao pescoço dos pais e foram levadas para o automóvel, a coerto de beijos e abraços.

Há largas horas que estes pais agurdavam em Lisboa sem notícias.

O novo autocarro finalmente chegou alta madrugada. Outra confusão do transbordo que inquietava o Senhor Director.

Sob a chuva fina e constante colocamos crianças, idosos e malas nesta nova esperança de chegar.

Lisboa custa, mas vai desta vez. Quarenta e cinco minutos acabaram com a viajem interminável.

Em casa o frigorífico e as latinhas dos biscoitos estavam vazios. Cair na cama e dormir rápido foi a solução.

Amanhã vou apresentar a minha fúria aos balcões da empresa.

Já me tinha ocorrido ser o travesseiro um bom conselheiro, mas contesto-lhe a moleza que me resta quietinho e fofo na vaga ideia de que autocarros de luxo, belas hospedeiras, serenos e fleumáticos condutores ar limpo e céu azul, não garantem uma boa viajem.

Muitas vezes também á partida da vida o céu é azul os campos verdes a confiança nos céus é ilimitada como a esperança é na terra, mas rodando como na estrada levantam-se, barreiras, erguem-se nevoeiros, cruzam-se caminhos a escolher, cai a noite e a chuva, e o motor arrisca-se a gripar.

Felizmente há fadas, estrelas, mecãnicos e solidários passageiros.

A luz deste dia novo afugentou e recolheu talvez a Alcoentre os génios maus de ontem para nosso descanso e até do Director.

Ergo o corpo dolente do leito, afundo no travesseiro a minha ira de ontem e assomo à varanda de onde comtemplo uma Lisboa ontem à noite fugitiva, e agora à mercê dos meus olhos, limpida, serena e clara, sob um Sol pacífico de Outono.

Estamos sãos e salvos, a família dorme descansada em sono reparador, e não resta senão talvez o mote para crónica de uma simples viajem.

No entanto uma leve angústia ficou-me na estrada. Para lá daquela barreira policial, que nos perdeu, atrás dessa cortina púdica erguida no caminho o palco poderia ser de tragédia, angústia ou morte e para alguém, ficar esta doce Lisboa perdida para sempre.

Olho meus filhos e penso.

Lisboa é longe ou perto?

Não sabemos.

Arbogue
Enviado por Arbogue em 16/07/2009
Código do texto: T1703519
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.