Todo Dia, É Dia De Feira

Terça-feira...Dia de feira.

Os meninos, os meninos grandes, brincam com os pequenos.

O menino desdentado ri, e o ar carregado atravessa os buracos de seus dentes, e enche seu estômago, vazio de café com pão. Os restos da blusa cor-de-rosa encobrem a verde, que contrasta com a calça branca encardida.

Os dedos dos pés encolhem-se para não escaparem pelas janelas dos sapatos.

- Carreto?- e já estão absortos novamente.

Um menino maior surra o pequeno, o raquítico, o piolhento, outro traga um cigarro que há pouco o velho tuberculoso jogou. Suga a fumaça e um resto de saliva porque o dente dói e o frio da manhã congela.

Parece-lhe que por instantes a dor desaparece. Agora ele chuta o pequeno.

– Carreto? Ah se eu fosse teu filho, eu... - outra “picada” no nervo. A dor sobe em ondas pelo rosto marcado, atinge a orelha suja e mora na cabeça, ai! A cabeça! Os três entram na feira, no meio da multidão. Logo voltam, encontraram mais quatro meninos. São todos iguais (?)...

Eles falam de futebol, da desgraçada dor de dente, do doce com mosquito no bar da favela e lambem os beiços quando a moça passa. Contam a bebedeira na esquina da escola, e contam moedas, os poucos carretos e sonham.

Sonham com o doce da esquina, um pouco de novalgina, a menina maluca que ensina a namorar. E chutam o menino pequeno, que já chora e agarra seus próprios cabelos, angustiado. Olham a “dona” que passa.

– Carreto, tia?

O dedo no nariz; querendo fazer xixi, as pernas magras e os joelhos que parecem nó de linha, sujos e esfolados, ajudam a sustentar o ventre doente. Já vem chegando mais dois, e um é menor que o primeiro que apanhava. Logo se juntam e o menino que era pequeno fica médio; seus olhos brilham, imediatamente seus pés maltratam o menor, ele subia na escala, consola-se.

Os grandes vêm em socorro do pequenino. Defendem-no. Guardam-no. O médio não entende – “por que só ele apanha, por quê?” Não entende. Vem uma moça “glandi” e acalma o menino. Quer saber sua vida, da vida pobre do menino médio. Tem oito anos e trabalha como carreteiro na feira, de terça a terça. À tarde engraxará sapatos. Sim, agora o irmão mais velho, doze anos, vai trabalhar com o padeiro. Este, que já tem oito anos pode então, ficar como engraxate, e o sorriso de poder ajudar a mãe, que lava roupa e está de barriga pela oitava vez “- A mainha é muito gorda”. A mãe está sempre de barriga. A tia e também a irmã estão de barriga.

-Quantos anos têm sua irmã?

-Tleze.

Os outros da família são magros. A pele mal disfarça a caveira.

Ele fala do caminhãozinho que ganhou do irmão “– Tem tlês rodas e é quase meio novo”.

Ela pensou em perguntar-lhe o que ele ia ser quando crescesse, mas a idéia lhe coloriu o rosto.

O menino sai correndo e a moça “glandi”, pensa que ele vai embora, que se cansou de ficar quieto só falando, mas o menino volta com uma florzinha amarela na mão e entrega na dela. A flor é linda, de doer os olhos e apertar a garganta. Ele faz um bico desajeitado e beija a moça. O rosto dela sai daquilo molhado, melado, mais bonito. Ele mal sabe para onde olhar, um forte rubor toma conta de sua face.

Ela quer levá-lo para casa. Acha que nunca falaram tanto com o menino, como ela agora. Pensa que talvez, nem sentiriam falta do moleque encardido. Mas olha os outros meninos. O mesmo brilho desgraçado nos olhos, os mesmos dentes que parecem pedaços de um quebra-cabeça que nunca se completa, nem há de se contemplar. Todos a olham com curiosidade, querendo fazer-lhe festa e vão se aproximando dela. Cada um contando sua história, e é sempre a mesma história.

Ela esperava alguém. Alguém já está vindo. Todos os meninos ajudam-na a carregar seus pacotes. Querem nada. Ela também nada poderia dar, além do seu tempo.

Lá vai a moça.

Os meninos grudaram seus olhos nos olhos dela. Ela sorri desajeitada e vai, lentamente, embora.

-Ah seu eu pudesse ao menos, colocar-lhes nos lábios, um eterno sorriso Caetano Veloso, haveria de me purificar, desde os ossos até a minha alma... Ah se eu pudesse!