Do Art Déco à Decadência

(23.08.2007)

“A existência de tantos apagões é o resultado de um apagão da ética(...) O apagão da ética nos impede de sofrer com a miséria que nos cerca; e nos torna tolerantes com a corrupção e a vergonha do analfabetismo, da exploração de crianças na rua, da atração dos jovens pelo crime...”

(Cristovam Buarque)

Sempre tive boa memória, desde meus primeiros dias de vida. Ainda me lembro dos primeiros anos, em Copacabana. Corria nas calçadas e, na praia, a areia nos olhos era um desespero. Lembro-me que não havia muita gente; muito menos, muitos carros. Depois, nos mudamos para Laranjeiras. Conheci os primeiros amigos entre os prédios em Art Déco; sem grades, com seus espaços abertos para todas as crianças. Lembro-me do Largo do Machado e do Catete. Da Praia de Botafogo, perto de onde ficava meu colégio, na adolescência. Lembro-me de andar muito a pé, despreocupado, e dos primeiros jogos que fui, no Maracanã. Naquela época, Tijuca, Vila Isabel e São Cristóvão ainda guardavam traços dos tempos da nobreza. Recordo-me, já na nostalgia da juventude, das diversas madrugadas de lua cheia que fui à rampa do vôo livre, na Pedra Bonita, sem medo de assalto. Lembro-me, também, do primeiro assalto, depois de uma festa; uma semana após o meu aniversário. Mas, ainda era normal. Ainda era uma situação que aconteceria em qualquer cidade, grande ou pequena.

No entanto a cidade cresceu. Desordenadamente. Em Copacabana aumentaram os prédios, as vias, o trânsito e, logo, tornou-se intransitável. Aos poucos, sua sina espalhou-se pela cidade e raros são os bairros onde ainda se identifica algum glamour: Jardim Botânico, Gávea, Leblon e Urca. As favelas cresceram. Tomaram contas dos morros; e O Morro tomou conta dos bairros e da periferia.

Não que o favelado seja responsável. Ele é vítima em todos os aspectos: falta de urbanização, investimentos, acesso à educação justa, má concentração de renda, resquício da cultura escravagista e, acima de tudo, preconceito. Nada foi feito para impedir que tais cidadãos – de onde saem artistas e atletas que tanto reverenciamos em palco e estádios; onde gritamos e louvamos ‘BRASIL’ – se aglomerassem nos guetos da margem da sociedade. Margem que, no Rio de Janeiro, é para cima, não para o lado. Talvez o melhor exemplo do apático holocausto homeopático que ocorre nas grandes e, até, pequenas cidades dos países ditos em desenvolvimento: ‘Decadance sin elegance’.

Nenhum brasileiro se incomodava – nem se incomoda - com aquele crescimento desordenado e injusto. Como se não fosse com ele. Puro preconceito: coisa que habita o coração de arrogantes acadêmicos, sem educação, sem ética. Principalmente, aqueles que atingem a esfera das decisões; e mantêm esse holocausto à luz do dia, à luz dos olhos; sem luz, no fim do túnel.

Temo por Santa Catarina. Temo por Florianópolis, onde a Praia Brava foi adestrada e enjaulada pelos condomínios; e os morros já começam o seu transplante de árvores. Temo por Balneário Camboriú, onde os prédios já escondem os banhistas do sol; e dizem para Itapema: “eu sou você, amanhã”; que o diz para Meia Praia; que o diz para... qual seriam, mesmo, as próximas cidades?

Pode-se mexer no passado, quando identificamos nos atos do presente as conseqüências futuras. E a consciência é o primeiro passo. Consciência de que o barco é um só e, no mar, náufragos,somos todos iguais.

Em inglês existe esta expressão: “calçar o sapato do outro”. Significa, colocar-se em seu lugar. É isto que falta a nós. Sofrer um pouco a dor do outro. Imaginar-se em seu lugar. Porque, no ‘fritar dos ovos’, o ‘outro’ é cada um de nós. Basta pensar: somos muito mais dependentes do coletivo, do que o oposto. Mas, quem forma o coletivo? Cada um de nós. Irônico, não?

Essa ética permeia o conjunto das decisões. Pois, este não está somente na mão do Legislativo e do Executivo. Está na mão do cidadão, ao lembrar ser ‘cada eu’ e ‘cada outro’ uma célula de sua comunidade. Na forma como se respeitam, se identificam, se interagem, se mobilizam, agem, exigem e, por fim, votam. Sem partido. O partido só pode ser um: Bombinhas ou Porto Belo.

Do contrário, só lhes restará o coração partido.