Zumbi

Sempre tive mais respeito: não pela verdade, mas pela mentira.

Nunca tive medo; antes, e sempre, sustentei minha ira. Já me meti em vielas obscuras, embebido em elixires acres e nauseantes. Já me entornei em mazelas pútridas, fétidas, espúrias, de bordéis infindáveis tracejados num esboço inexistente. E, ainda assim, nunca temi.

Nunca tive jeito: não para confessar-me, talvez para poupar-me. Imerso numa fissura abismal, enclausurado em minhas crenças, avenças. Egoísta com minhas pertenças, minhas riquezas imensas; calado em minha ontologia infame e auto-difamante.

Talvez tudo esteja mudando, ou pior, quem sabe tudo já esteja mudado. E eu, atônito mas nunca atento, desapercebido de tudo, permaneci inerte. Maldita cegueira! Ofuscou-me logo no derradeiro instante estonteante da revolução... Bendita cegueira! Poupou-me das notícias desastrosas que sempre a acompanham (não à cegueira, mas à revolução).

Revolução é superação, é dar a volta por cima da “crise”. Bobagem de especialista. Revolução é muito mais o ápice da crise em si mesma, agonizando, engasgando-se em seu próprio sangue, vomitando vermelho nos gráficos dos índices que passam no noticiário. Enquanto isso, eu durmo. E sonho. Obsoleto, mas confiante (afinal, nada temo). E meu sonho, sazonal cegueira da mente, transforma-se, ainda que brevemente, em doce realidade. E assim vivo sonhando, um eterno sonâmbulo sonolento. Prefiro assim.

Sempre tive mais respeito: não pela verdade, mas pela mentira.

Fernando em Pessoa
Enviado por Fernando em Pessoa em 17/07/2009
Código do texto: T1704639
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