Interior

Meu coração batia forte, a ansiedade era o tom.

Cheguei, não sei como, na rodoviária moderna, limpa e cheia de gente indo e vindo de todas as direções, vindo de algum lugar ou indo para seu destino. O trafego de carregadores de malas era intenso, o auto falante anunciava as novas partidas e chegadas, lojas ostentavam seus produtos “souvenirs”e lanchonetes abarrotadas. Não sei como cheguei e apressadamente corri ao balcão onde se vendiam as passagens que me levariam de volta ao meu passado. A cidade do interior onde nasci.

A fila, claro, desproporcional à minha pressa de embarcar, mas, pensei, o mais importante era que eu estava resgatando lembranças dos lugares onde vivi quando pequenino. Tempos em que eu brincava na rua, sob supervisão de mamãe, e via carros enormes. Na pracinha onde ela me levava os bancos eram bem grandes e a caixa de areia onde ficavam os brinquedos devia medir quilômetros. A própria praça, lembro bem, era quase tão grande quanto o Parque Ibirapuera, e tinha também muitas árvores, um verdadeiro bosque no qual eu imaginava as historinhas que ouvia, Chapeuzinho Vermelho, Saci Pererê e todas as fantasias que habitam o imaginário infantil.

Lembro que a casa era muito grande, que eu podia correr do quarto para a cozinha e a distância era bem considerável. O teto altíssimo ostentava um lustre enorme, que iluminava toda a sala e parte do corredor. O sofá da sala era imenso e dava para mergulhar, treinando os vôos do super herói do momento ou do menino herói imaginário que era eu.

Tinha um quintal que mal cabia nas minhas memórias, com árvores frutíferas plantadas por meu saudoso avô, balança de corda pendurada, casinha feita de restos de madeira que tinha até água encanada (uma mangueira velha que tinha sido ligada à pia quebrada que meu avô consertou).

Tudo era grande naquele tempo. O coreto da praça da cidade, a igreja matriz, as ruas largas, as pessoas, os cavalos que todo ano passavam e os gigantes que os montavam, nas procissões e nas cavalgadas, o clube da cidade, o comércio (que para mim se resumia na venda do Seu Joaquim onde eu comprava chicletes e balas e, quando meu avô conseguia enganar minha mãe, comprava picolé para me fartar antes do almoço).

Consegui comprar a passagem e esqueci de pegar o troco de tão ansioso que estava para a viagem no tempo, corri para a plataforma de embarque já que eu tinha conseguido comprar a última passagem do ônibus que ia partir em poucos minutos.

Entreguei as malas para o motorista que as guardou no reservado e impaciente subi, indo direto para minha poltrona, no ultimo banco.

Mergulhei novamente nas recordações e lembrei da Aninha, uma menina mais velha que adorava brincar comigo, lembrei da sensação de sonho de quando estava brincando com ela, não era paixão infantil daquelas que quase todo menino sente pela professorinha, mas um sentimento de levitação, de flutuar mesmo, éramos amigos (eu tinha esse pensamento). O cheiro da dama da noite, um arbusto muito oloroso, entrava pela via do pensamento e perfumava o ônibus todo. Adormeci.

Acordei com o motorista me chacoalhando anunciando a chegada.

Esfreguei os olhos, olhei pela janela e tudo estava lá. Do lado direito via a praça que eu sabia imensa e decepcionado notei que era bem pequena. Umas três ou quatro arvores, uma em cada cantinho do jardim, ao centro um tanque de areia minúsculo com algumas crianças brincando ruidosamente. A igrejinha de uma torre jazia igualzinha ao que me lembrava, exceto por dois detalhes: estava bem velhinha, com pintura antiga e reboco caindo; e era tão pequena que poderia passar desapercebida, estivesse eu distraído ou sem a carga da lembrança. Olhei para outro lado e percebi uma construção antiga já sem telhado e sem as madeiras. Era o velho coreto, pequeno, com capacidade talvez para uns cinco ou seis músicos.

Segui pela ruazinha que eu reputava a mais larga da cidade, ainda conservada, mas muito aquém da avenida que lembrava. Passei pela vendinha do Seu Joaquim, vi que ainda existia, decadente, mas conservada igual à minha memória. Não resisti, entrei.

É a venda do Seu Joaquim? Perguntei imaginando que o homem já tivesse nos deixado mas o rapazinho apontou, algo desanimado, um velhinho muito idoso em uma cadeirinha de balanço no fundo da loja. Era ele. Ainda podia encontrar os traços de expressão que me lembrava. Com olhar baço ele virou-se para mim e pareceu reconhecer. Depois voltou a mergulhar em si próprio. O rapaz informou que ele estava com demência senil, e já estava com 99 anos.

Agradeci, sai rumo à casa que meu avô havia deixado para mamãe e que há muito tempo estava desabitada.

Sabia que não ia encontrar igual ao que lembrava, mas fui assim mesmo.

A casa estava bem conservada. Era bem pequenina, singela até.

Casa simples do interior. Entrei, fui apressado resgatar a memória do quintal.

Estava lá exatamente como eu me lembrava. A goiabeira, a mangueira e o balanço de corda ainda pendurado. No lugar da casinha de madeira com água encanada apenas algumas madeiras amontoadas.

Nesse momento a vizinha debruçou no muro. Era uma jovem senhora, de uns cinquenta anos, mais ou menos.

Boa tarde – falei procurando ver nos olhos dela alguma personagem do meu passado. Não reconheci.

Boa tarde – respondeu, com aquele sotaque que imediatamente me arrepiou.

Perguntei coisas cujas respostas eu já sabia, como o período em que a casa estava desabitada, o nome de alguns vizinhos e, tomado de súbita coragem perguntei o nome dela.

Dona Aninha, foi a resposta. Soou como soou também sino da igreja que chamava para a missa da tarde.

Era a mesma Aninha que brincava comigo. Eu tinha sido reconhecido por ela e repentinamente senti a mesma sensação de flutuar.

Ela chamou para um café com pão caseiro, aceitei, claro.

Já era noitinha quando voltei para a rodoviária. Minha realidade clamava meu retorno.

O turbilhão de emoções tinha sido excessivo, eu estava cansado.

As lembranças, o confronto com a realidade, nada tinha sido ruim,ao contrário, eu me sentia pleno.

Chegando à capital já amanhecendo tomei a primeira providência: liguei para o advogado cancelando a venda da casa.

Não podia me desfazer do meu passado.

Almir Ramos da Silva
Enviado por Almir Ramos da Silva em 18/07/2009
Reeditado em 25/07/2009
Código do texto: T1706102
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