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“Se eu me transfigurasse em um marciano e glorificasse valores profanos, eu também seria crucificado”.

Ouvi, certo dia desses, essa frase. Não me estou recordando se a frase era exatamente assim, mas o sentido era exatamente esse. Rigorosamente esse. Deus (qual deles?) meu, inafastavelmente esse.

Ouvi, certo dia desses, esse axioma! Ouvi, não li em lugar nenhum, isso é o melhor de tudo. Ouvi, de seu próprio criador e não daqueles que o interpretaram, e isso é o melhor de tudo. Talvez agora, aqueles que me lêem repassarão essa frase adiante, da forma como eu a interpretei, e aí estará formado o marco zero da cadeia viciosa que sempre distorce as filosofias mais puras. E, pior, eu serei esse marco zero: o pioneiro, o interpolador, o inescrupuloso corruptor das verdades originais. Absurdo! Logo eu, que sempre defendi a liberdade de expressão, estou agora enclausurando pensamentos, reproduzindo modos de pensar condicionados, que futuramente serão condicionantes, para logo depois serem tidos por meras interpretações rebuscadas da rústica verdade, que será esta página. Este texto!

Imaginar que, pelo simples fato de interpretar uma fase pela primeira vez, serei citado em textos, e re-citado em palestras, e recitado em poemas, e re-excitado constantemente ao ver meu próprio nome espalhado por todos os cantos, tido como o criador (que não sou) de uma frase célebre.

E o verdadeiro criador da frase? Aquele que a pronunciou? Esquecido, desconhecido. Escrevi primeiro, disseminei primeiro, a frase é minha. Interpretativamente minha. Anacronicamente minha. Trouxa, falou porque quis: ouvi primeiro. Se não quis, falou ainda assim, não a escondeu de mim, e agora estou aqui, o marco zero da cadeia infamante, injusta e retorcida que é a “citação”. A citação da situação. Citação que embala teorias psicodélicas (esses vão distorcer “meus” pensamentos), teorias de conspiração (esses, sim, vão supor a falsidade que eu sou), teorias sobre teorias (que vão apenas citar meu nome), e teorias vazias (que vão apenas criticar: a mim e às outras teorias, achando que esse é seu papel, nada propondo de inovador).

Depois de vários longos anos, todos iriam se perguntar quem seria o mestre que proferiu tal frase, e todas as referências dirigiriam a resposta a mim. Pois nada antes havia sido escrito, e nada antes havia sido dito. As teorias de conspiração diriam que não, que eu copiei essa frase de algum lugar – algum amigo meu, filósofo ébrio, esquecido e sem cautela – e que eu apenas colhi os louros depois. E estariam certas. Depois de mim viriam comentadores, copiadores, “filosofadores”, num infindável novelo de citações. Citação original? Eu. Logo eu, que sempre defendi a originalidade das verdades.

Ninguém saberia e poucos desconfiariam que a frase não era minha. Que eu a tinha apenas transcrito, e agora gozava do reconhecimento e do conforto financeiro que essas oitenta e quatro (talvez menos, talvez mais, dependendo do jeito como forem pronunciadas) letras me haviam proporcionado. Não, não, sempre primei pelas verdades primeiras, estas sim as verdades verdadeiras. Sempre exaltei o simples, o singelo, o original e o autêntico.

Sempre reconheci a beleza das pequenas coisas, admirei as essências, glorifiquei o honesto e humilde - e humilhado. Será que eu seria capaz de confrontar meus valores – que de sagrados nada têm – com aqueles advindos de uma falsa fama? Um falso sucesso, baseado na minha esperteza em reproduzir com velocidade e perspicácia o pensamento de um amigo meu, filósofo ébrio, esquecido e sem cautela?

Logo eu, que sempre glorifiquei valores profanos. Logo eu, que nunca quis ser crucificado para servir de exemplo pra ninguém. Logo eu, que não sou exemplo pra ninguém.

Se me descobrissem, seria eu crucificado? Não sei. Talvez em Marte.

Fernando em Pessoa
Enviado por Fernando em Pessoa em 18/07/2009
Código do texto: T1706648
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