Prelúdio

A sirena tocou... Bem ao lado, na rua, som ardido... Profundo, som de sirena de ambulância, som de cidade grande.

Acordei meio abobado, com a sensação de ter dormido muito. Qual nada, no relógio da Sé acabou de soar apenas uma badalada, uma da manhã ainda.

Não havia muito que fazer, ou havia? Fui até a sala, D dormia com a televisão ligada, mania dela, era sempre assim, deitava no sofá e no máximo em meia hora... Dormia.

Desliguei a TV, não fazia frio dentro do apartamento, deixei-a como estava só de calcinha e uma camiseta tamanho grande que sabe Deus como entrara naquele apartamento, minha eu sabia que não era.

Olhei para o corpo de Dani estendido no sofá. Se ficasse até de manhã iria pedir para ela depilar a virilha e as pernas. Dani, como a maioria das mulheres que conheço, no inverno só rapava suas axilas.

Uma ereção quase passou pela minha cabeça, mas... Melhor não. Acho que ela até toparia fazer amor àquela hora, sabia que ela gostava de amar neste horário. O problema era eu. Estava sem comprimidos, algo poderia não dar muito certo.

Também estava muito cansado, tinha bebido muito nas duas noites anteriores. Fomos a um bar. O T Moralez estava tocando e Daniela queria de qualquer forma vê-los tocar, confesso que a fusão de jazz e música latina até me animam; mas contagiam Daniela Brown de tal forma que ela não conseguia ficar parada, essa música entra nas veias dela. Então fomos ver e ouvir The Moralez por duas noites seguidas, apesar de o repertório variar.

Dani espirrou, melhor dizendo, suspirou. Era o máximo que aquele narizinho à turca conseguia produzir. Peguei um lençol que estava numa poltrona e a cobri, ela apenas virou de lado e se encolheu, começando a ressonar.

Esqueci de dizer, o apartamento era só dela, eu fazia apenas a função de seu...namorado. Não, namorado não é bem a palavra, melhor seria confessor e ouvidor. Eu a ouvia muito, a vida me fez treinar bem o ouvido e até onde acho que sei, Daniela Brown contava tudo para mim.

Ficava horas falando sobre sua vida, que, aliás, não era nada extraordinária. Família burguesa, já foi rica. Agora apenas arrotava o café do baronato de outros tempos. Daniela Brown é como eu a chamo. Seu verdadeiro nome e sobrenome remontam de outra época. Mas mesmo assim tinha posses; o que garantia suas extravagâncias. Apenas duas vezes em seus vinte e cinco anos batera boca com o pai. Quando, numa família de médicos e advogados, Daniela resolveu ser jornalista e outra quando resolveu sair de casa.

Ela vivia me convidando para tomar um chá com torradas, à tarde, na casa dela. Obviamente eu nunca fiz uma idiotice dessas.

Olhei para Dani, mulher esguia, magra, alva como giz. Tinha cortado e pintado seu cabelo acastanhado, que agora estava mais do que preto, bem curto, coisa que eu detestei. Mas agora, vendo-a dormindo, o preto do cabelo contrastava com a pela alva. A menina sabe o que faz.

Outra tentação de ereção foi quebrada por outra sirena, agora da polícia, cortou meu tesão.

Me deu uma vontade danada de tomar uma bebida forte. Lembrei-me que a única coisa com álcool naquele apartamento era um resto de conhaque que tinha conseguido fazer entrar meio que sorrateiramente. Tinha feito um pacto com Daniela: Eu pararia de fumar e ela de beber. Tinha conseguido meu intento e por tabela, também tinha conseguido que ela não experimentasse algo que alguns “amigos” chamavam de ”chazinhos”. Isto a família de Dani me deve, sem ao menos me conhecer.

Tomei uma boa dose de conhaque e fui me vestir, comecei a pensar que não era apenas a garrafa de conhaque que podia denunciar minha presença naquele apartamento, também algumas cuecas no meio de suas calcinhas, alguns discos de rock no meio do seu idolatrado jazz e folk, algumas camisas e calças ao lado de seus vestidos e jeans, como também alguma literatura ocidental em meio aos seus livros sobre meditação e romances e é claro um aparelho de barba e uma escova de dente em seu banheiro.

Tomei mais um copo, o último, o que me deu uma vontade danada de fumar, que eu sabia logo iria passar, mas que naquele momento só me fez pensar em um cigarro.

O efeito do álcool, o corpo de Dani ressonando, a madrugada me fizeram sentir vontade de ouvir algo como Carmina Burana ou Bolero, e amar, transar com Daniela Brown por toda a madrugada. Agora tinha uma ereção completa e sem precisar usar os comprimidos. Mas, não havia nem Carmina, nem Bolero e me lembrei que também não tinha comprado camisinhas.

Sentei ao seu lado, passei minhas mãos pelas pernas de Daniela, estava morrendo de tesão. Quando ela sussurrou.

- Mau? Era assim que ela me chamava quando estava carinhosa comigo. – Vamos dormir na cama?

- Não, preciso ir embora, esqueceu que tenho que atravessar meia cidade para chegar em casa? Minha filha chega hoje, você sabe disso.

- Ta bom Mau, só não se esqueça de deixar meu presente.

- Ok, respondi.

Daniela voltou a dormir, levantei do seu lado. Meu Deus, como eu amo essa mulher. Vesti minhas roupas, engolindo meu desejo, fui até a escrivaninha da sala e fiz seu presente. Peguei a garrafa de conhaque, mexi nos cabelos de Daniela e fui embora.

Na portaria, encontrei David, o porteiro chinês com cara de gato velho, mais larápio e sujo que eu já encontrei.

- Bom dia! Disse ele olhando maroto para a garrafa de conhaque que eu trazia nas mãos. Se Dani voltasse a aparecer bêbada, de madrugada, falando seus palavrões, tenho certeza que o porteiro diria ao pai dela que o culpado seria eu.

- Bom dia David, até.

- Até.

Sai para a rua e comecei a sentir aquele cheiro de madrugada se transformando em manhã.

Algumas horas depois, Daniela Brown acordaria, iria até a escrivaninha e leria meu bilhete ou o seu presente, sempre deixava algo escrito para ela quando saia de madrugada, embaixo de uma pedra, a nossa pedra. Uma pedra feia que tínhamos achado um dia num parque.

“Se após este dia que você vai viver se após tudo o que acontecer neste dia. Se você não encontrar alguém para se apaixonar, me ligue e se também nada acontecer comigo, eu virei”.

“Nada temos a temer a não ser as nossa próprias palavras (não conheço e nem quero conhecer o autor)”



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