A Missa

(À Daniel Oliveira de Azevedo,

in memoriam)

O folheto colorido é distribuído na entrada a todos os que vêm para a missa na Igreja de São Pedro do Mar, no Recreio dos Bandeirantes. Servirá como o nosso guia no acompanhamento da missa através das diferentes fases do ato religioso. Cada uma delas com seus pontos específicos.

Logo na primeira página, uma gravura nos chama a atenção: Jesus Cristo, com um chicote feito de cordas, expulsa um vendedor do Templo, furiosamente “espalhando as moedas e derrubando as mesas dos cambistas”, como veríamos mais adiante, no Ponto 9, Aclamação ao Evangelho, na página 2 do folheto. No pé da mesma página 2 vemos a propaganda do produto Leite de Rosas e logo a seguir, na página 3, a do Supermercado Sendas, que devem suportar os custos da publicação do folheto. Tendo em troca a lembrança de seus nomes sugerida aos integrantes da comunidade.

Mais tarde veríamos algumas meninas da comunidade, com participação na cerimônia religiosa, se aproximando do altar, pelo corredor principal do Templo, com duas cestinhas de palha onde os fiéis deveriam depositar suas contribuições e ofertas para a igreja. Não há valor estipulado, mas o dinheiro se faz presente como nos tempos de antigamente, como nos tempos de Jesus Cristo.

No tópico Liturgia da Palavra, no Ponto 5 (Primeira Leitura), pág. 1, dentre as falas atribuídas a Deus, lemos que: “Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses além de mim... Não te prostrarás diante desses deuses,... pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento”. Como pode um Deus de sabedoria e tolerância reivindicar somente para si o amor de todos? Não seria egoísmo? E as pessoas, civilizações, muitas delas desenvolvidas, felizes e de bem com a vida, que antecederam JC? Como ficam elas com seus deuses? Devem abandoná-los? Não podem ficar com eles e com esse Deus anunciado por JC, que para elas é novo? Não seria razoável que esse novo Deus, o Deus Todo-Poderoso, onde podemos encontrar a maior das sabedorias, não seria razoável que Ele pudesse admitir que escolhêssemos a quem dedicar o nosso amor ou o nosso credo? Pelo menos as pessoas que antecederam JC, o seu mensageiro?

No Ponto 12 (Preces da Comunidade), pág. 2, lemos que “A Lei do Senhor é perfeita: conforto para a alma e alegria para o coração”. Alegria no coração e conforto na alma foi certamente o que o invasor português encontrou em cada um dos habitantes que viviam aqui quando eles chegaram. Os índios, considerados selvagens, não conheciam a mentira e não poluíam os rios, para não falar de muitos de seus outros atributos. Mas tinham seus deuses. Com quem aprenderam a ter alegria no coração e a alcançar as condições para o conforto da alma. Isso muito tempo depois de JC.

Tratam-se de digressões que somente devem ser levadas a sério por mim. Que não tenho o direito de achar que elas devem prevalecer sobre aquilo que os outros consideram. Que, por isso mesmo, fui à missa e não me arrependo, apesar de todas as digressões ou de tudo que eu não possa entender. Rezo do meu jeito. Também tenho medo. Mas não posso me furtar a algumas deduções. Disso não tenho medo.

Por isso fui à missa, como muitas outras pessoas, na esperança de que uma boa dose de energia positiva e desinteressada pudesse ser consumida em louvor da alma, que teve muito conforto na vida terrena e alegria no coração, de Daniel Oliveira de Azevedo. Só isso explica a docilidade e ternura do Daniel, a amizade que tinha pela mãe, a inteligência e a capacidade de trabalho. Qualidades inegáveis de quem nos deixou em função de um tumor cancerígeno com apenas 27 anos. Não poderia deixar de atender à convocação de sua mãe, nossa doce amiga, brilhante nessa luta pela vida, ela que perdeu os dois filhos que teve, os dois com menos de trinta anos, o mais novo antes do Daniel. E os dois pais, embora já idosos, com desaparecimentos muito próximos. E ficou agora sozinha. Ninguém melhor que a Vanda pode saber da necessidade do conforto na alma e alegria no coração para ter chegado até aqui, como também para continuar um pouco mais adiante. Com muitas missas e seus folhetos. Ou não.

Rio, 20/03/2006

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 09/06/2006
Reeditado em 24/12/2011
Código do texto: T172133
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