Na fazenda

Ajeitou os documentos velhos e ficou olhando pela janela, perdendo os olhos nas montanhas, observando os cascos dos animais, mastigando os campos sem vida. Melhor fugir da fazenda e desaparecer pra sempre das lidas rotineiras e bambas. Bambaleando pernas, perseguindo alemoas nos salões de outono, pisoteando as terras vermelhas rachadas pelo vento. Pudera varrer consigo as lembranças, os pequenos achaques nas contas do bar, os muitos acessos de cólera na imensidão das noites vazias. Melhor seria escolher apenas as estrelas pintadas no céu, descobrir as vida faceira nos açudes de banhos gelados, afujentando a saudade sem dor, abrilhantando o que sobrara de ar. Mas não, as lidas na fazenda, o velho passeio de botas engolindo bombachas, o peitoril amassado da janela esperando conserto, o fustigar dos cavalos nos açoites de mãos violentas. Deveria persistir na mesma ladainha dos tempos idos, do despertar na cidade e amanhecer no campo. Tal como na época em que pensara crescer dentro de si a força e virilidade do macho erguendo o império. Um império que hoje se iguala ao braseiro apagado, acalentado pelo assopro frágil do velho simplório, que se vangloria do churrasco ardendo e das costelas doendo, dos quadris emperrados, dos joelhos dobrados na frente dos anos. Melhor seria viver a vida simples, sem o chafurdar dos jipes, batizados nas lamas represadas em dias de temporal, avalizado por amigos endinheirados, vestidos de couro e camisetas rolê, sorrindo dentes brancos recém produzidos e mastigando a grama que lhes suga nos cantos da boca. Ou então beber do uísque os últimos sinais de lucidez e voltar molhado pra casa, pra beira do abismo, sentindo o frio coçar de leve as costas e não ter ninguém para amenizar a dor, a não ser o lençol elétrico. Mas que fazer se a vida no campo não corresponde mais à placidez do olhar, a natureza da criação, o fascínio das luzes e sonoridades do dia? Não assim, perto da alma, quando estavam juntos e pensavam arregimentar a vida a partir de suas escolhas. Que nada, tudo caiu no vazio, na falta de sentido, no alvorecer de amigos de todas as searas desfrutando apenas o consumo de seus desejos. Pudera voltar à solidez dos sentidos, à veracidade das palavras ditas e dos dizeres ouvidos, das amenidades das lembranças e das buscas no futuro, do viver junto e solitário, sem mistério ou mentira. Só que nunca vivenciou o que pensa e a fazenda ou a estância como seu pai dizia, não passara de um subterfúgio da vida fácil e fabricada, sem grandes objetivos a não ser dispor dos prazeres do poder e estar, sempre olhado, sempre vigiado, sempre apoiado, sempre servido, construindo e destruindo o império. O físico e o interno, aquele que somente sua alma podia edificar.