A mulher boazinha (Martha Medeiros)

Perdoe-me Martha, mas hoje você caiu do céu!

Estava exatamente nesse momento questionando meu lado boazinha numa conversa informal com minha filha quando cliquei não sei onde aqui no meu pc e você apareceu: maravilhosamente submete-me a novos questionamentos.

Odeio todos os bonzinhos que por minha vida passaram.

Naturalmetnte que não permaneceram.

Os professores bonzinhos não me permitiram aprendizagem.

Os familiares bonzinhos não me deixaram vivenciar "nãos" e outras perdas que seriam importantes para minha construção pessoal.

O marido bonzinho tornou-se um peso e foi difícil desvencilhar-me da relação: por culpa, super ego, e essas coisas.

Os amigos bonzinhos em algum momento deixaram de sê-lo e então a amizade acabou.

Então Martha, veja onde você entra nesse meu momento:

E... obrigada escritora.

A mulher boazinha ( Martha Medeiros)

Qual o elogio que uma mulher adora receber?

Bom, se você está com tempo, pode-se listar aqui uns setecentos:

mulher adora que verbalizem seus atributos, sejam eles físicos ou morais.

Diga que ela é uma mulher inteligente, e ela irá com a sua cara.

Diga que ela tem um ótimo caráter e um corpo que é uma provocação,

e ela decorará o seu número.

Fale do seu olhar, da sua pele, do seu sorriso, da sua presença de espírito, da sua aura de mistério, de como ela tem classe:

ela achará você muito observador e lhe dará uma cópia da chave de casa.

Mas não pense que o jogo está ganho: manter o cargo vai depender da sua perspicácia para encontrar novas qualidades nessa mulher poderosa, absoluta.

Diga que ela cozinha melhor que a sua mãe, que ela tem uma voz que faz você pensar obscenidades, que ela é um avião no mundo dos negócios.

Fale sobre sua competência, seu senso de oportunidade, seu bom gosto musical.

Agora quer ver o mundo cair?

Diga que ela é muito boazinha.

Descreva aí uma mulher boazinha.

Voz fina, roupas pastel, calçados rente ao chão.

Aceita encomendas de doces, contribui para a igreja, cuida dos sobrinhos nos finais de semana.

Disponível, serena, previsível, nunca foi vista negando um favor.

Nunca teve um chilique.

Nunca colocou os pés num show de rock.

É queridinha.

Pequeninha.

Educadinha.

Enfim, uma mulher boazinha.

Fomos boazinhas por séculos.

Engolíamos tudo e fingíamos não ver nada, ceguinhas.

Vivíamos no nosso mundinho, rodeadas de panelinhas e nenezinhos.

A vida feminina era esse frege: bordados, paredes brancas, crucifixo em cima da cama, tudo certinho.

Passamos um tempão assim, comportadinhas, enquanto íamos alimentando um desejo incontrolável de virar a mesa.

Quietinhas, mas inquietas.

Até que chegou o dia em que deixamos de ser as coitadinhas.

Ninguém mais fala em namoradinhas do Brasil: somos atrizes, estrelas, profissionais.

Adolescentes não são mais brotinhos: são garotas da geração teen.

Ser chamada de patricinha é ofensa mortal.

Pitchulinha é coisa de retardada.

Quem gosta de diminutivos, definha.

Ser boazinha não tem nada a ver com ser generosa.

Ser boa é bom, ser boazinha é péssimo.

As boazinhas não têm defeitos.

Não têm atitude.

Conformam-se com a coadjuvância.

PH neutro.

Ser chamada de boazinha, mesmo com a melhor das intenções, é o pior dos desaforos.

Mulheres bacanas, complicadas, batalhadoras, persistentes, ciumentas, apressadas, é isso que somos hoje.

Merecemos adjetivos velozes, produtivos, enigmáticos.

As “inhas” não moram mais aqui.

Foram para o espaço, sozinhas.