Galinhas voadoras

Wilson Correia*

Bezerra da Silva cantou que “Malandro e Malandro, Mane é Mane”. Tedy quis ser malandro. Nem o nome dele ninguém sabia. Era Tedy, e pronto! Só não era dado a diabruras pesadas. Mas a personalidade... essa exacerbava o jeitinho, algo positivo para o brasileiro que, a cada dia, tem de se safar dos autoritarismos institucionais e da teatralidade formal que nos oprimem.

Dentre todas as “malandragens” que praticava, Tedy sentia predileção especial pela das “galinhas sufocadas”. Assim nomeava as penosas fisgadas por ele com linha, anzol e isca, normalmente, um grão de milho, meticulosamente preparado para a captura. Com esse arsenal ele “sufocava” galinhas da vizinhança e as mandava para a panela. Era batata: bastava subir numa árvore, esconder-se entre as folhas e jogar o grão, que a galinhada vinha e engolia o “amarelin”. A Tedy só restava puxar o bicho até o colo, o mais rápido possível, abafar a cabeça da coitada numa das mãos e torcer o pescoço dela com a outra. Pronto: mais uma sufocada estava no papo.

Foi nesse trabalho suado que ele deparou com o quintal de Dona Zelinha, fartamente habitado por muitos seres que lhe faziam a água na boca. Quando viu tantas delas “no ponto”, armou de lascívia o olhar e partiu para incessantes caçadas, sobejamente bem-sucedidas. Dona Zelinha não fazia outra coisa senão lamentar o sumiço das coitadinhas poedeiras. Também se doía toda pela diminuição de ovos que vinha colhendo nos últimos dias.

Assim, no intuito de aplacar a dor dessas perdas, Dona Zelinha deu de fazer tricô. Justo no arremate do primeiro, sentada de frente para a janela para aproveitar a luz natural, eis que, sem mais nem menos, uma de suas “botadeiras" passou ante seus olhos, içadas para o alto, qual uma plumagem indo ao vento e para o céu.

– Deus do céu!, exasperou-se Dona Zelinha. Minhas galinhas devem estar loucas... Já vi de tudo nesse mundo, mas galinha voadora?... desesperou-se e saiu fechando tudo que era porta e janela da casa para evitar que não fosse invadida pelas desmioladas cocoricós.

Enquanto a descabelada Dona Zelinha saía pelos fundos, rumo à casa do padre para pedir a bênção do terreiro, Tedy, do alto dos galhos de uma grande e cerrada mangueira, muito bem camuflado, “sufocava” mais uma penosa, rindo da situação e da própria cara de pau em que havia se tornado.

Dona Zelinha longe, lá combinando com o padre a dita “rezação”, foi a situação que caiu como uma luva nas mãos tedyanas. Foi tanta a folga, que ele aproveitou para “colher” duas outras galinhas, uma vez que a semana seria longa e seu estômago reincidiria no vazio e no ronco.

Feito isso, mandou-se para casa. Preparou caprichadamente a sua iguaria. Abasteceu-se sem-cerimônia e saiu à rua para fumar. Na rua, notou pessoas rezando em casa de Dona Zelinha e se mandou para lá. Participou ativamente dos pedidos de bênçãos ao terreiro da vizinha, entre os quais:

– Senhor, fazei com que as galinhas de Dona Zelinha se curem dessa mania de voar. Amém!

Tedy chispou para casa depois de ter orado. Sentou-se no passeio e ficou observando o movimento. Tão logo todos os rezadores deixaram o recinto, ele retornou à vizinha para complementar uma “contribuição pessoal” à causa da agora promovida a “amiga”:

– Dona Zelinha, minha querida: trouxe uns pedacinhos “a passarinho” e um pirãozinho do caldo de galinha que a senhora adora. Coma, porque o seu dia hoje não foi nada fácil, atreveu-se a aconselhar, solícito como o melhor dos bons samaritanos e sem deixar a velhinha desconfiar de alguma coisa.

Dona Zelinha consumiu os pedaços de carne a passarinho e o pirão ao tempo em que desfilou profundo desgosto pelos prejuízos do terreiro, mas sinceramente agradecida pela solidariedade da vizinhança, da qual sobressaía a de Tedy, a quem disse com o coração inflado:

– Ah... se todos no mundo fossem anjos como você!

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.