A presunção de culpa

Quando comecei a advogar, há alguns anos, uma moça se aproximou de mim, depois de uma palestra para a qual eu havia sido convidado para falar sobre um tema não relacionado à advocacia, mas que eu dominava. A moça, enquanto eu falava, se remexia na cadeira, denotando uma incontida aflição.

Como faço sempre nas palestras, uso de exemplos do cotidiano (próprio ou de empréstimo) e, naturalmente, falo de coisas da minha profissão.

Mal terminara a fala, em meio aos aplausos, ela chegou bem perto, tomou coragem e entregou-me uma cartinha. Agradeci, guardei no bolso prometendo ler assim que terminassem os trabalhos.

Já em casa, depois do jantar, apalpei o bolso e lembrei da missiva. Abri, li e, imediatamente, pus-me a procurar doutrina jurídica para estudar o caso que lá estava relatado.

Era um caso corriqueiro, mas nunca antes eu havia trabalhado naquela área do Direito, precisava me atualizar.

Tratava-se de dois irmãos que, cada um na sua função, trabalhavam em uma casa noturna (em verdade um lupanares). Um deles gerente, o outro segurança. Ao primeiro cabiam as funções de compra, venda, recebimento de mercadorias, atendimento em balcão e contratação e demissão dos servidores da casa; ao outro cabia a revista aos frequentadores a fim de evitar o porte de armas ou a entrada de drogas no estabelecimento, e, vez por outra, tinha de vistoriar as dependências, sobretudo os banheiros masculinos, os nichos entre o palco e o bar, a chapelaria e a pista de dança.

Certo dia quando estavam em plena atividade laboral irrompe, delicadamente qual hipopótamo em loja de cristais, uma batida policial.

Todos foram abordados e revistados, clientes e funcionários.

Os policiais queriam resultado, estavam lá para prender alguém, culpado ou inocente, mas que pudesse ser responsabilizado pelas drogas que encontrariam (pois é, eles tinham de encontrar a droga houvesse ou não ali).

Um dos irmãos, o que trabalhava como segurança, foi revistado primeiro e inquirido sobre ele ter ou não antecedentes, ao que respondeu que não. Grande erro. Essa era a senha para incriminar alguém, pois não tendo antecedentes teria uma pena branda e não se defenderia a contento.

O outro irmão também foi preso naquele momento. Foram presos os dois irmãos, juntamente com outros funcionários e todos foram encaminhados para a delegacia para esclarecimentos e de lá mandados para um centro de detenção provisória. Era uma prisão em flagrante delito (ainda que o delito fosse ficção), por crimes relacionados às drogas o que ensejaria a permanência deles presos até o final da instrução criminal.

A moça que me entregou a carta era esposa do segurança, cunhada do gerente.

Eles eram inocentes.

Eu tinha de atuar, de tirar eles de lá.

Entrei no caso, mais por amor ao debate, mais por acreditar na inocência dos irmãos, lembro que cobrei um valor simbólico, para não ficar gratuito.

Apresentei a defesa inicial pedindo a liberdade deles, o relaxamento do flagrante. Negado.

Impetrei habeas corpus, com pedido de liminar, negado também.

Resumindo: permaneceram presos por dez meses sem que a instrução terminasse, sem ter havido qualquer audiência.

O caso permaneceu sem julgamento por todo esse tempo, negando-se um dos princípios basilares da nossa Constituição, o do devido processo legal.

Nenhuma petição foi protocolada com a finalidade protelatória, nenhum prazo foi perdido. Uma reflexão é necessária: seriamos nós advogados a emperrar o judiciário?

Tenho ouvido muitos dizerem que o excesso de recursos atravanca o processo, mas e a falta de respeito aos prazos que a própria lei impõe a todos, inclusive aos juízes e aos promotores, não é de se considerar?

Naquele caso, anos passados posso ver, foram absolvidos, caros leitores, por falta de provas.

Por falta de provas dois irmãos ficaram presos quase um ano.

A que conclusão chegamos nós?

Almir Ramos da Silva
Enviado por Almir Ramos da Silva em 13/08/2009
Código do texto: T1752748
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