Os condenados

Wilson Correia*

Da minha infância guardo duas recomendações que sempre acendem os faróis à minha frente no caminho da vida. A primeira é sobre segurança pessoal: “Nunca estenda a mão a um estranho”. A segunda é de caráter moral: “Você nunca obterá nada aprazível de um medíocre”. O medíocre, é bom lembrar, é aquele que fica a meio caminho nos processos da vida, nunca concluindo nada de maneira valiosa e interessante.

Pois foi como medíocre que vi Tedy, um ladrão desaforado de galinha, ser processado por seus atos quase obscenos em face da ética da responsabilidade. E o foi, nada mais nada menos, por Seu Toninho, humilde vendedor de caldo de cana, cuja moedeira ficava num ponto estratégico da cidade e de onde ele via, privilegiadamente, o movimento de todos ao seu entorno. Ele sabia o quão malandro e ensaboado era Tedy. Não só:

– E ele não faz isso sozinho, não. Nesse mato tem outros coelhos.

Tedy era um “coelho” pequeno ali naquele mato, contado entre aqueles brasileiros a quem, historicamente, a dignidade era negada um a um. Isso, de certa forma, o redimia, mas não por completo: o fato de “coelhos” grandes sempre terem se colocado acima da lei e da ética e sempre buscado valer-se de privilégios à custa da negação de direitos, aniquilando qualquer senso de cidadania, não dava a Tedy carta livre para fazer justiça com as próprias mãos.

– Por isso constituí advogado, contava Seu Toninho, para que ele saiba que entre os brasileiros ainda existem aqueles de brio na cara.

De fato, quando o jeitinho brasileiro de ser encontra-se com o direito, às vezes uma esperança de que a lei prevaleça acende ante nossos olhos.

– Ocorre que o José Brasileiro da Silva, vulgo Tedy, escolheu fazer da propriedade alheia algo de seu, aí incluindo os víveres essenciais à manutenção biológica daquilo em que ele se tornou: um perigoso meliante e competentíssimo em se safar de qualquer acusação, sustentou o advogado diante do Juiz, complementando que o mesmo deveria ser condenado a restituir às vítimas aquilo que pudesse simbolizar a salvaguarda da honra e a reposição de perdas materiais sofridas.

O Juiz acatou a alegação inicial do advogado e seguiu o rito processual ao pé da letra. Durante a demanda, contudo, outros personagens da cidade foram arrolados, como testemunhas, acusadores e acusados.

A cidade de Gersinópolis foi sacudida durante meses. Para evitar prejuízos às diligências e para evitar a fuga dos acusados, o Juiz decretou o segredo de justiça para o caso, algo estranho para alguns, que argumentavam que a medida só teria sentido se se tratasse de assunto de família, coisa que o caso Tedy e companhia estava longe de ser. Outros, partidários do Juiz, alegavam que o magistrado havia pensado bem, pois poderia ocorrer de todos os envolvidos nas gatunagens vindas à luz do foro quererem armar escapulidas para fugirem das responsabilidades. Dessa forma, o debate chegou aos mais recônditos lugares daquela comunidade.

Como o Meritíssimo era recém-chegado na praça, em alguma coisa teria de resultar todo aquele rebuliço. Do contrário, ele é que colocaria em dúvida o pulso da justiça, o que abriria um precedente nada aconselhável para sua atuação na localidade. Então, o consenso entre as pessoas de bem era o de que o Juiz não passasse a mão na cabeça de ninguém.

Não passou. Isso ficou claro no dia em que a sentença veio a público:

– José Brasileiro da Silva, vulgo Tedy, por ter se valido da prática perniciosa de roubar galinhas alheias, fica condenado a sete anos de reclusão. Igual pena se aplica, também, à Senhora Maria Brasileira da Fé, conhecida por Dona Zelinha, exatamente pelo fato de ela ter lançado mão dos mesmos métodos de Tedy para povoar seu terreiro de belas galinhas.

Surpreendidos, todos queriam saber quem era Dona Zelinha. Seu Toninho fez questão de esclarecer:

– A beata penitente das missas de meio dia.

Por que será que o jeitinho brasileiro de ser não encontra o bom direito todos os dias? Assim a mediocridade não continuaria a nos "presentear" com tantos dissabores!

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.