A gota d’água!

A goteira insistia em pingar sistematicamente sobre a pia. Não satisfeita, mantinha o mesmo período de tempo entre um maldito pingo e outro. Tic, tic, tic! Já não agüentava mais, e por mais que não quisesse, em minha mente, entre um pingo e outro, começava contar, uma contagem descabida que me deixava louco, um... dois... três... quat... Argh! Não conseguia, era mais forte do que eu. Tentava ludibriar minha mente pensando em passarinhos bonitinhos, cachoeiras, na vizinha maravilhosa que eu tinha a sorte de ter, suas curvas, uau! E tic... um... dois.. três... Tudo de novo!

Percebia que não ia conseguir dormir daquele jeito, se alguém não fizesse alguma coisa eu ia passar a noite inteira contando indesejáveis gotas batendo sobre o fundo da pia. Não conseguia entender como gotas tão pequenas poderiam ser tão insuportáveis. Meu Deus!! Eram apenas gotas d´aguas. Como podiam incomodar tanto? Elemento essencial pra vida humana, pois sem água não haveria vida. Era uma grande contradição. Não conseguia entender, naquele momento, como algo tão inconveniente poderia representar algum tipo de vida que fosse. Nós somos praticamente compostos por água, às vezes me sinto uma grande gota d´agua, de fato, rolando sem direção, ou em direção a algum buraco qualquer, sem dúvida a segunda hipótese se encaixava mais à minha pessoa.

Incomodava tanto aquele barulho, sempre ao mesmo passo, que, por um instante, comecei a acreditar que perderia o juízo. Apesar de eu sempre ter sido uma pessoa sensata, aquele barulho era mesmo enlouquecedor. Achei graça do pensamento anterior em que afirmava me sentir uma grande gota. Carambolas, eu uma gota, como um homem poderia ser uma gota? Uma grande gota em forma de homem... Ou pequenos homens em forma de gotas? Achava graça nesse trocadilho. Imagina se...

Seriam aquelas gotas pequenas pessoas caindo sobre minha pia?! Claro, tudo era tão óbvio e como não pude enxergar antes. Haha! O barulho imenso que saia da cozinha, atravessava a sala, chegando ao meu quarto, explodindo nos meus tímpanos, não poderia ser ocasionado por gotas de água, gotas são pequenas demais! Isso seria um absurdo, em grande erro pensar assim e eu não gostava de cometer erros. Mas como aqueles pequenos homenzinhos teriam entrado pelo encanamento?!

Um dia tinha visto na televisão um filme, onde o protagonista vivia uma situação semelhante, e logo depois era devorado por pequenos aliens, que penetravam por suas fossas nasais e logo se alocavam em seu cérebro, depois controlavam seu corpo... Não, isso acontecia em outro filme, no das aranhas, não me lembro muito bem o nome do filme, era um nome até engraçado, “ataque alguma coisa”, como era mesmo... Mas aranhas não conseguiriam chegar ali pelo encanamento não... Isso definitivamente era coisa dos Aliens, malditos aliens, já tentavam controlar minha mente colocando a culpa nas pobres... Tic... Um, dois, três quatro, Tic. Já estava contando de novo, será que os chineses torturavam as pessoas assim?! Eu tinha que fechar aquela torneira.

Estava tão quentinho embaixo daquela coberta. Adorava deitar de barriga pra baixo, às vezes, quando fazia muito frio, colocava as mãos embaixo da barriga e nada me fazia sair daquela posição, era tão boa a sensação de sentir minhas mãos esquentando, quase orgásmico. Eu havia verificado tudo antes de dormir, se a porta estava mesmo trancada, esta me lembro de ter verificado no mínimo umas três vezes, a luz do banheiro, se a pasta de dente estava fechada, até a descarga eu tinha costume de verificar. Este é o problema de se morar sozinho. Não há ninguém com quem dividir todas estas obrigações, tinha eu que realizar todas estas tarefas sozinho. E agora que eu estava bem aquecido, debaixo daquelas cobertas que eu havia aquecido com tanto esforço, sim, porque quando deitamos encontramos necessariamente fria a cama, o travesseiro e mesmo a coberta, extremamente gelados, é necessário um tempo pra que a temperatura se encontre agradável, naquele ponto em que sair da cama é quase um crime, neste ponto em que me encontro.

Já estava decidido, não ia sair da cama. Enfiaria a cabeça entre o cobertor e ignoraria o barulho dos pingos. Que genial! Agora eu ia tirar aquele descanso, que modéstia parte, merecido. Uma certa felicidade e tranqüilidade já começavam a acomodar-se sobre o meu peito... Não funcionou! Continuava ouvindo aquele tic tic tic tic tic miserável. Miseráveeel! Ainda por cima lembrava-me que já tinha tentado essa idéia cinco pingos atrás. Para ser mais sincero, já era minha oitava tentativa de tapar os ouvidos.

Não é possível que merecia tanta desgraça. Será que um homem honesto, que vive pra trabalhar não tem o direito de descansar à noite. O que eu tinha feito pra merecer tamanho castigo?! Deus! Será que você existe?! Se existe, por favor, feche a torneira pra mim.

Meus pedidos eram em vãos. Tudo agora na minha cabeça me castigava, antigos remorsos vinham à tona. Porque eu não tinha ouvido minha tia Clemilda? Devia ter ido à igreja, em todas as missas. Assim Deus gostaria mais de mim e fecharia aquela torneira, ou então, poxa! Eu deveria ter casado com Terezinha, ela sempre dizia que me amava tanto, com certeza ela se levantaria da cama pra fechar a torneira pra mim. Que doce! Obrigado, querida!

Se soubesse que sofreria tanto, teria me casado, aceitado o pedido. Se bem que... Talvez isso tenha sido uma praga daquela mocréia maldita, uma macumba talvez, por eu a ter dispensado. Porém, me lembro agora que isso era impossível, minha traidora memória, Judas! Recordou-me de que ela é quem havia recusado o convite. Não sabe ela o que perdeu. Certamente uma hora dessas estava amargamente arrependida. Isto não era obra de nenhuma reza brava de Tereza.

Não agüentava mais contar de um a quatro. Ocorria-me às vezes que qual seria o mistério da natureza, porque teriam aquelas gotas que desabarem sempre no mesmo espaço de tempo. Porque não caia uma, depois de uns cinco segundos outra, depois uma outra após seus dez segundos, depois uma atrás da outra, assim como duas irmãs tic-tic. Por qual motivo nesse mundo sempre quatro segundos? Quatro? Por que então quatro? Seria alguma espécie de mensagem, alguma revelação do mundo superior. Talvez aquilo tentasse me dizer algo que o resto do mundo todo havia deixado passar despercebido, mas eu não deixaria. O que seria?! Talvez este mesmo mundo não havia sido criado em sete dias, mas sim em quatro, ou talvez o salário mínimo não ia aumentar aquela mixaria que eu havia ouvido na radio, mas quatro vezes aquele valor, o que convenhamos ainda era muito pouco. Quem sabe talvez pudesse ser uma revelação apenas pessoal, do tipo, em quatro meses eu melhoro de vida, em quatro anos eu morro! Mais quatro dias e eu encontraria a mulher dos meus sonhos. O próximo seis números da mega sena seriam o quatro. Minha Nossa Senhora! Eu estava rico!

De tudo que me ocorria, a única coisa que eu tinha certeza é que mais quatro pingos e eu estaria louco.

Com certeza aquilo era um teste. Eu estava sendo testado naquele momento, teria que ser homem o suficiente e não me entregar. Eu não perderia para aqueles pingos! Se eu tivesse alguma força ainda, até que eu gritaria isso. Mas era melhor não provocar o inimigo. Tinha que reunir toda a força que ainda restava em meu ser, levantar-me e fechar a torneira. Era uma tarefa muito difícil, só de pensar em sair da cama minhas forças me escapavam. Porque eu fui pagar a conta de água? Agora colhia os frutos dos meus atos inconseqüentes.

Eu poderia também reunir todas as minhas forças, imagináveis e inimagináveis, não para levantar, é claro, mas para tentar numa tentativa alucinante de bloquear aquelas gotas com a força do pensamento. Do meu pensamento. Com toda minha vontade eu me concentrei e por alguns segundos as gotas pararam. Incrível! Pararam!

Eu não poderia comemorar, qualquer vacilo em meu pensamento e elas retornariam, e com certeza ainda mais forte. Não consegui. A euforia de ter conseguido detê-las apenas com a força do meu pensamento acabou por me desconcentrar e logo elas voltaram. Ainda estava em estado de choque. Eu era um paranormal! Meus problemas haviam se acabado. Nunca mais sair da cama pra pegar um suco, um sanduíche, apagar uma luz. Agora eu não precisava mais me mexer, nunca mais na minha vida. Isso era demais! Nem precisaria trabalhar, já não precisava, não convivia mais na condição de um simples mortal. Poderia muito bem ficar em casa, na cama, e realizando minhas tarefas no escritório só com poder da mente. Até imaginava a cara de todos olhando para os objetos voando na minha mesa a realizarem minhas tarefas, com certeza ficariam assustados. Fracos. Ficariam surpresos quando descobrissem o tamanho do meu poder. Haha! Acredito que quando se trata de poderes mentais, não existam distancias. Poxa! Eu poderia ter vários empregos, ganhar uma nota e o melhor é que, ao menos eu precisaria sair da cama! Talvez nem precisasse trabalhar, eu poderia ir naqueles programas de auditório, eu ficaria famoso, talvez, eu nem precisasse ir ao programa, ele viria até mim, eu nem sairia da minha cama. Receberia a fama e todas as facilidades e felicidades intrínsecas à fama em minha cama, minha caminha quentinha, com a barriga em cima das mãos, no bom calor da minha aconchegante caminha quentinha gostosinha sem esse barulho insuportável de GOTA NA PIA!

Acalmava-me de novo e reunia novamente minhas energias psicofísicas a fim de utilizar meus potenciais psíquicos. O barulho insistia em voltar. Concentrei novamente meus esforços, mas... Nada acontecia. Esforcei ainda mais que da primeira vez, quase fiquei roxo, e nada novamente. Sabia! As gotas haviam retornado ainda mais fortes. O barulho que elas produziam estava mais alto.

Após horas, lançado em tentativas, infrutíferas, enfim, havia entendido a mensagem que aquelas gotas miseráveis estavam tentado transmitir. Entendido o real motivo daquela guerra. Uma sensação de poder invadia meu ser. Que sensação maravilhosa! Agora eu poderia usar as estratégias certas, entendido a guerra, seria fácil derrotá-las. Queriam as malditas que eu me levantasse da cama, saísse do meu bem bom e me lançasse ao temível frio assassino que percorria a casa. Pois não me entregaria a tal chacina, nunca permitira tal carnificina dentro do meu lar. Lugar sagrado. Meu lugar sagrado! Como havia permitido tal guerra em território santo? Uma gota de sangue a mais que seja não seria derramado sob aquele teto. Não queria mais guerra, o mundo precisa de paz, e eu a desejava.

Parece apenas que as malditas gotas não a desejavam. Sanguinárias! Não descansavam um minuto, não atrasavam em nada cada ataque, sempre quatro, quatro... Maldita estratégia! Mas não sabiam elas que haviam encontrado um páreo duro. Entregar-me? Jamais! Mudaria minha estratégia, haha! Gandhi tinha razão. Meu Deus! Gandhi sempre teve razão, como eu nunca havia percebido. A paz é o único caminho a seguir. Tudo faz sentido agora! Porém as horas corriam, e, malditas, nem pela memória de um herói falecido desistiam, como podiam ser tão... Tão... Não me admiro não passarem de simples gotas de água.

Tic, um dois, três quatro, tic, um... dois... três... quatro... tic... tic... tic... Venciam-me pelo cansaço. Porém num ultimo golpe, de um sonhador que não desiste da luta, um guerrilheiro, ativista, destes que dão a vida por uma causa, se ela for justa, concentrei minhas energias, percebia que a noite já não estava tão escura, logo o Sol apareceria para dar bom dia a todos, as malditas gotas gritariam da cozinha: VITÓRIA! Mesmo assim, resignei-me em não me entregar, canalizei minhas energias e já podia sentir todo o poder mental, novamente, manifestando em mim. Desta vez não deixei pensamentos vãos me desconcentrarem da tarefa.

Depois de algum tempo, não sei exatos quanto. O barulho cessou-se, mas não podia vacilar, ou elas voltariam ainda mais violentas e combatentes. Concentrei-me. Não ouvi mais o barulho, mas observei quando tentaram entrar no quarto, elas vinham em bando, com suas antenas e patas. Em momento algum haviam me enganado, eram alienígenas-aranhas. Haha! Tolas, eu já sabia de tudo, há muito. Saltavam sobre minha cama, mas eu já estava flutuando graças a meu poder telecinético. Tentaram me atingir com seus raios barulhos, mas meus tímpanos já estavam protegidos sob meu poder magnético. Foi uma batalha e tanto, não sei se teria as vencido se não fosse a ajuda da esquerda. Tive que ceder e acabei fazendo alguns acordos com alguns membros de partidos neoliberais, o que foi imprescindível para a vitória contra as gotas que atacavam em grupos de quatro. Um pequeno grupo tentou roubar meu bilhete premiado da mega sena, bem na hora que o salário mínimo era aumentado, ao menos não se ouvia nenhum TIC, o que já era um grande alívio para nós do eixo do bem e... TRIMMMMMM.

Acordei assustado. O despertador acusava hora de trabalhar, e eu teria de me levantar. Tomar banho, preparar o café da manha, pentear-me, encontrar aquele pessoal chato e a cara feia do meu chefe. Perder o meu dia naquele escritório? A cama ainda estava tão irresistível! Bem que poderia ser algum feriado nacional ou algum incidente poderia ocorrer na cidade...

Seria tão bom se eu pudesse trabalhar no escritório sem ter que sair da cama... Mas ainda me restavam os poderes paranormais! Será q a essa altura todos no escritório estavam com cara de bobo olhando meus instrumentos trabalharem sozinhos?! Eu preferia acreditar que sim. Estava morreeeendo de sono. O tic havia acabado, o barulho da rua já não deixava ouvir muita coisa, ou quase nada, dentro de casa. Quem sabe... Houvesse mesmo vencido as gotas... Tinham dado tanto trabalho! Eu estava morrendo de sono. A única coisa que conseguia no momento era emitir aquele bocejo gostoso...

Agora... Deixe-me descansar em paz! Porque ninguém... Ahh! Ninguém... É de ferro...

Gregório Borges

Gregório Borges
Enviado por Gregório Borges em 17/08/2009
Código do texto: T1758916
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