QUANDO O TEMPO NOS SOA NO TEMPO...

São dezoito horas e uma sonoridade familiar me reportou ao ontem.

Ruídos das crianças na rua, um bate bola constante que adentrava pelo quintal, algumas bolinhas de gude pelo chão, bonecas jogadas na grama, e os chamados das mães, que naquela época, apenas donas-de -casa, se agitavam com o banho dos filhos, com a proximidade do jantar, com o marido que chegava estafado do trabalho, sem muito tempo para as chorumelas de sempre.

"Menino, não ouviu a sirene, não?- tá na hora, eita como é atazanado esse moleque!", dizia a vizinha, aos berros, através do muro que separava as nossas casas.

Com minha mãe não era diferente.

Eu quase sempre chegava do dia, computando uma ralada a mais no joelho, uns botões a menos na camisa, um novo tropicão no mesmo dedão sucateado do meu pé.

Certa vez pisei numa taturana!

Não consigo me lembrar do que ardeu mais, se a queimadura do bicho na minha pele, ou a cintada que recebi por ter pulado o muro para brincar depois daquela maldita sirene.

Noutra então , atrasada para retornar antes do apito, atolei meu pé no barro e perdi um dos sapatos. Não dava para disfarçar, quase fiquei sem orelhas além de ter perdido o calçado.

Aquilo parecia um toque de recolher. Vez ou outra me via maquinando como poderia eu quebrar aquela sonoridade diuturna.

Tratava-se no entanto, da sirene dos trabalhadores da fábrica que um pouco mais adiante dali,avisava ao meio dia que chegara a hora do almoço, e mais tarde, na hora da Ave-Maria, nos dizia que chegara a hora de todos irmos para nossas casas.

Para eles terminava mais uma árdua jornada e para

para nós, crianças, embora ainda não soubessemos, era um dia a menos na escala das brincadeiras da vida.

Um dia divertido que se ia, que jamais nos retornaria.

Talvez seja por isso que temos vários tipos de memórias, sem as quais não retornaríamos à felicidade.

Daqui, tornando para a minha janela do meu cenário de hoje, acabo de ouvir a mesma sirene vinda duma construção civil, quarenta anos depois, uma sonoridade cujo toque me recolhe para dentro de mim.

E juntamente com ela, aciono minha lembrança, e posso nitidamente sentiro cheiro daquela sopa de feijão da tarde e a maciez do meu pijama de flanela florida.

Fecho os olhos, calço minhas pantufas de coelhos brancos e silenciosamente entro no meu quarto de dantes a balbuciar com o coração: "A benção, mamãe".