A LEALDADE EXISTE

Osvaldo André de Mello*

Eu cultivava a sinceridade e a coerência como regras maiores de vida. Mas os agricultores erram e deles a natureza faz gatos e sapatos.

Nos governos de Aristides Salgado dos Santos, houve certas impropriedades na gestão da cultura; no coro dos descontentes, pois, saí, fazendo barulho. Alguém disse que fui o crítico de primeira hora do prefeito Aristides, um artista, de quem esperava mais sensibilidade para propor uma política cultural.

Mas a essa voz de decepção, antecedera um fato. Era nos tempos da ditadura, no ano das “Diretas, já!”. Havíamos nos esquecido de o que era votar. Com o GET-Grupo de Estudos do Teatro, montamos “O Povo Fala”, de Carl Sandburg, tradução de Helena Alvim Ameno, especialmente para a primeira campanha de Aristides, cuja candidatura encarnava a mudança política que se processava sagazmente no país, sem uma gota de sangue, sem rolar uma única cabeça de ditador. O candidato a prefeito comparecia às apresentações lotadas, no Divinópolis Clube, sem bilheteria, e era ovacionado por todos. O elenco interrompia o espetáculo e aplaudia a sua entrada, da cena aberta.

Não só o teatro, todos os segmentos culturais o apoiaram. Mereciam, e o tempo o pedia, uma gestão exemplar.

Os jornais “A Semana” e “Agora”, nos seus arquivos, guardam os meus cuspes de marimbondo.

A certa altura, cobrei das cabeças pensantes e críticas que se manifestassem. E o fiz, pessoalmente, a Irene Amaral Ferreira. Ela me respondeu que era amiga do Aristides uma vida, de muitas lutas, de muitas conquistas, que eles riram e choraram juntos, portanto, o que a ela interessava era a amizade, que nada se importava se havia ou não política de cultura. O que acontecia ou deixava de acontecer para ela não representava o menor valor. O grande e absoluto valor a ser preservado era a amizade. Em primeiro lugar a vida, depois, a arte – é verdade. De todo o barulho e cuspes de marimbondo o meu único ganho foi esta suprema lição da minha Mestra querida: a lealdade é a virtude de alicerce, das que se agregam às experiências da amizade.

Como, hoje, eu compreendo o sentido da lealdade! Ah, e nas últimas eleições a que concorreu, eu dei ao político Aristides o meu voto, de público. Ele, sim, fora elegante, na dele, impávido, leal a si, a seus princípios éticos.

A lealdade apresenta-se mais compreensível nas relações familiares. Se o marido diz para a esposa: “Olha, querida, aquele casal que nos visitou algumas vezes me causou um prejuízo imenso, não posso mais conviver com ambos”, ela não vai responder: “Lamento, querido, eu gosto de você, no entanto, gostei muito dos dois e vou me tornar mais e mais amiga deles.”

No reino dos bichos, digamos assim, o cachorro encarna o exemplo da lealdade. A natureza, excluído o homem, nos três reinos, exibe incontáveis demonstrações de lealdade. Mas a cultura assente o indivíduo que professa princípios de candomblé, de Alan Kardec, acende velas no túmulo do Padre Libério e reza as rezas de proteção da igreja católica. Serve a... alguns senhores, como não ensinou Jesus Cristo. Tal possibilidade de manipular e congregar universos diferentes acaba migrando para as relações de amizade e outras relações sociais.

Imaginemos que você procure um revisor conhecido seu para dar uma geral na sua tese de mestrado. O revisor realiza um excelente trabalho e, dessa vez, não cobra. Para a revisão da tese de doutorado, porém, você contrata, vejamos... vejamos quem: Branca Maria de Paula! ( a badalada revisora do momento ), que no seu texto não faz nada que chegasse ao menos perto do que lhe proporcionou aquele sujeito, gratuitamente, e ainda lhe cobra o olho da cara. Você foi desleal ao primeiro revisor.

Há expressões, no idioma, que registram a existência da lealdade nas relações humanas: “O que fizer com fulano, faz comigo”, “só passando por cima do meu cadáver”, “faça por ele como se fosse por mim”...

A prática da lealdade revela as amizades verdadeiras, as que merecem durar para sempre. E palmilham as relações perenes, em todos os aspectos da sociedade.

Publ. Jornal AGORA, 11-06-09, p. 2.

*Osvaldo André de Mello nasceu em Divinópolis, estudou Artes Cênicas no Teatro Universitário em Belo Horizonte e voltou para Divinópolis, onde se formou em Letras. Sua primeira publicação foi aos dezenove anos, com A Palavra Inicial (1969), e o poeta publicou ainda Revelação do Acontecimento, Cantos para Flauta e Pássaro, Meditação da Carne, e A Poesia Mineira no Século XX, entre outros. No teatro, dirigiu peças de grandes autores, como T. S. Eliot, Nelson Rodrigues e Emily Dickinson. É responsável pela montagem e direção dos espetáculos APARECIDA NOGUEIRA IN CONCERT e ENSINA-SE A VIVER.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 18/08/2009
Reeditado em 20/08/2009
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