TRISTE CENA

Durante meus vinte e três anos voltados para a educação, já vi e vivenciei muitas situações desconfortáveis, que envergonham os olhos e, a alma, se contrai. Ainda bem que as situações boas superam as ruins.

Como já é sabido, sou pedagoga. Trabalhei na rede particular mais de vinte anos. Parte como funcionária e outra como proprietária. Criei a minha própria escola, que funcionou onze anos – de 1997 a 2008 – num bairro nobre da cidade, atendendo às crianças a partir de dez meses até, aproximadamente, os dez anos.

Criança sempre foi minha grande paixão. Olhar diariamente o rostinho de cada uma, dando-lhe as boas-vindas. Presenciar suas peraltices; acompanhar seu crescimento; ser chamada de tia por todos. Não há alegria maior.

Modéstia à parte, sei trabalhar com alunos em qualquer nível de ensino. Tenho dedicado meus anos, de prática no magistério, a estudos diversos, para auxiliar o fazer pedagógico.

Sempre preferi trabalhar com àquelas crianças ditas rebeldes. As que, menos pequeninas, são “convidadas” a mudarem de escola por mau comportamento. As ditas complicadas, problemáticas!

O curioso é, que, durante a minha trajetória, como pedagoga, ainda não me deparei com essas tais crianças. Mas sim, com às indisciplinadas ou com algum tipo de patologia. Que, sendo tratadas com o devido respeito e atenção; e tratadas com medicamentos – quando o médico receita - com pouco tempo começamos a ver os resultados positivos.

Daí a pergunta: as crianças são problemáticas ou as escolas, ainda, são incapazes de lidarem com a diversidade do comportamento humano? Os estudos que fiz, na área da Psicopedagogia, me forneceram instrumentos para optar pela segunda opção. Entretanto, reconheço a formação que tivemos na vida escolar. Em especial, no curso superior. Muito conteúdo pra decorar e “vomitar” nas provas. E, digamos de passagem, bem distantes da real de uma sala de aula. Fomos “preparados” para trabalharmos com turmas homogêneas. Coisa que não existe em nenhuma escola do mundo. Porque cada ser é único. Tem suas características pessoais e bem particulares para o ato de aprender.

Acredito que, um educador – ou qualquer profissional – que se preze, veja a formação continuada como uma constante em sua vida. Uma vez que, no mundo globalizado, na famosa era do conhecimento, é mister se manter atualizado. O que contribuirá para a quebra de paradigmas envernizados.

Em onze anos, atuando como proprietária de escola, muitos momentos de felicidades, realizações e comprovações – com a prática – de muitas convicções. Mas, Infelizmente, as leis do Brasil são coniventes com a inadimplência escolar. Entretanto, eu não sou! Acredito que todo trabalho deve ser recompensado. Especialmente, os bem feitos. Como, sozinha, não conseguiria mudar as nossas leis, mudei de ramo, na área empresarial, mas continuo pedagoga, por vocação, na rede pública de ensino. E foi exatamente nesta rede – sei que também há na particular – que me deparei com a triste cena, que intitula este texto.

Um garoto, a quem vou chamar de João, um jovem de dezessete anos – hoje - me fez enfrentar um grande desafio. Que, infelizmente, este foi um dos poucos onde não obtive sucesso. No entanto, a vida segue e ainda há esperança.

Por volta do ano 2006, retornei à escola onde já havia trabalhado, aproximadamente, uns oito anos. É uma escola de Ensino Fundamental II, EJA e Ensino Médio, com uma média de oitocentos alunos, divididos em três turnos: matutino, vespertino e noturno. Fica situada num bairro periférico – hoje em condições estruturais bem melhores – da cidade. Os alunos são de classe baixa, com raras exceções. Até porque, no Brasil, a maioria – sem dados estatísticos - dos funcionários de escolas públicas mantém seus filhos em escolas particulares. Imaginem os que são mais abastados.

Particularmente, sou um exemplo desses. Sei o quanto eu e meu esposo suamos pra bancar dois filhos em escolas particulares – e vistas como as melhores da cidade – para garantir o futuro de nossas crias. Hoje, uma com vinte e um anos e, o outro, com dezoito, já estão em Universidades Federais. E, não me arrependo porque, comparando o conhecimento cientifico e, de vida, que eles têm, com os alunos das escolas públicas onde já atuei, percebo, a olhos nus, a grande diferença. Não é que faltem profissionais bons nestas escolas, mas convenhamos, o sistema de ensino muito tem deixado a desejar. Embora reconheça que, atualmente, aos poucos, está realidade venha mudando. Neste meu caminhar de educadora sempre lutei por isso. Afinal, educação é um bem comum e, gênero, de primeira necessidade – através dela conhecemos o retrato de um país -, e, levando em consideração a quantidade de impostos que pagamos neste Brasil de meu Deus, a nossa era pra ser um filé. Embora saibamos que povo esclarecido deixa de ser escravo. E quem estar interessado nisso? Deixemos essa discussão de lado pra não perdermos o foco deste texto. Que seja tratado em um outro.

O fato é que, desde pequeno, João estudou nesta escola e sempre apresentou um comportamento rebelde – eu só o conheci em 2006 -, apesar de aparentar, na maioria das vezes, ser um jovem doce, prestativo e educado.

Fisicamente, era de uma beleza radiante, semblante de anjo. Menino pobre, mas aparentemente, bem cuidado. De tez branca, corada, olhos verdes. Dava gosto de se ver o garoto.

Antes do meu retorno para esta escola, muitas foram as vezes que, a mãe de João, fora chamada para ficar a par dos problemas indisciplinares apresentados por ele. Entretanto, quando estes eram postos, pela direção ou equipe pedagógica, mostrando atitudes que infringiam às normas da escola e implicavam em seu comportamento

moral, a sua mãe se comportava de maneira inadequada para o objetivo que a escola pretendia alcançar. Que era uma reeducação de seus hábitos, que vinham lhe prejudicando na aprendizagem e em seus relacionamentos com colegas, equipe escolar, entre outros.

Lembro-me muito bem que, no ano de 2006, a mesma foi chamada porque ele havia sido pego, cheirando cola, dentro do banheiro masculino da escola. Esta, muito exaltada, insistia para que nós provássemos o ocorrido e acrescentou que nós tínhamos marcação com o filho dela. Daí, percebe-se a dificuldade para ajudarmos João no processo reeducativo. E, a partir deste momento veio uma sucessão de outros incidentes, ainda mais graves, envolvendo, inclusive, pequenos furtos. Enquanto isso, nós da equipe pedagógica, procuramos nos aproximar de João tentando identificar a origem de seu problema. E, logo descobrimos que, sua revolta, começou pela falta da assinatura do seu pai no registro de nascimento dele.

Em conversa, ele nos colocou que, não iria fazer nenhum outro documento enquanto não conseguisse obrigar seu pai a assumi-lo como filho. Conversamos com o mesmo tentando mostrar que, necessariamente, este fato não o faria uma pessoa infeliz. Que, se ele se empenhasse nos estudos poderia ter um futuro brilhante. Tudo em vão porque o mesmo continuava irredutível e chegava a dizer que, quando completasse dezoito anos iria atrás do pai para matá-lo.

E observávamos que seu comportamento só ia se agravando; começou a andar com galeras; usar drogas, embora negasse esse fato. Pois era de uma sagacidade incrível. Quando o encontrávamos fumando dentro da escola, ele tinha uma habilidade tamanha que, ao chegarmos perto dele, simplesmente este escondia o cigarro e não tinha quem descobrisse onde. Acredito, que às vezes, chegou a engolir. E ficava rindo de nossa cara pela sua esperteza.

Um dia eu, a coordenadora pedagogia, e a diretora, resolvemos ir em sua casa falar com a sua mãe. Esta nos recebeu já “armada”, mas conseguimos “desarmá-la” mostrando que o nosso objetivo era ajudar ao seu filho. Mais calma esta passou a conversar conosco. E, juntas, resolvemos levá-lo a um psiquiatra para tratar de sua rebeldia. Felizmente tenho amigos nesta área, e, um deles se dispôs a fazer todo o seu tratamento em sua clínica particular, sem ônus. Este encaminhou-o a uma psicóloga – também particular - que me prontifiquei a pagar as despesas.

Tudo estava indo bem. Eu mesma o levava às clínicas, em meu carro. Até que, um dia, a psicóloga pediu exames de sangue para saber o porquê dele estar emagrecendo tanto. Logo este se recusou a fazer. Sabia que, nos exames, ia ser detectado o uso de drogas. Parou o tratamento. Ia para a escola só vagar nos corredores. Já não nos ouvia mais. Até que, certo dia, recebemos a notícia que João havia sido baleado, numa escola próxima a sua casa.

Fomos visitá-lo no hospital; ajudamos no que pudemos. E, quando este se recuperou da cirurgia, para a retirada das balas, a escola toda, uniu-se e fizemos uma cota para pagarmos um internamento para João, num centro de reabilitação. Antes, conversamos com ele, que aceitou prontamente.

E lá fomos nós deixá-lo no centro de reabilitação. Voltamos felizes, pois sabíamos estar fazendo a coisa certa. E agora era só esperar pra ver os bons resultados. Ficou certo que toda semana, nos revezaríamos, para ir visitá-lo, levar algo que precisasse.

Infelizmente, com pouco mais de uma semana, recebemos um telefonema, do centro, dizendo que o mesmo havia fugido, pois não aceitava às normas da instituição. Logo, ele foi nos visitar, e em conversa o convencemos a voltar pro centro. Mostramos que sua aparência já estava bem melhor, mais saudável. Este voltou, nos prometendo se encaixar dentro dos padrões estabelecidos pelo centro.

Para nossa tristeza, com poucos dias, João fugiu novamente. E, dessa vez, sem volta, porque o diretor também não o queria mais lá por causa de sua indisciplina. Foi quando nos sentimos atados, sem saber mais o que fazer. Este, adotou a rua como seu abrigo, e até hoje vagueia em busca de um trocado para alimentar o vício do crack. Está um farrapo humano, vive sempre pela calçada da escola pedindo a professores e funcionários. Todos nós sentimos muito por termos perdido um ser, inteligente e com potencial, para a droga.

Percebemos, nesta história toda, que a João faltou apoio familiar. Desde os primeiros comportamentos agressivos apresentados. Se, a partir do inicio, da preocupação da escola em ajudá-lo, não tivesse sido interpretado, por sua mãe, como atitudes de marcação para com o seu filho, hoje contaríamos outra história.

Portanto, concluímos que amar é, acima de tudo, educar. Encobrir os erros dos filhos não os ajuda a crescer, mas sim a transformá-los em delinquentes juvenis.

Este ano, João fará dezoito anos. Que futuro terá essa linda planta que desabrochou e, antes de enraizar e criar ramagens vastas, foi podado? E quantos casos há como o de João. Quantas vidas ceifadas. Impedidas de crescer e florescer. Vítimas de um sistema desumano, onde prevalece a ignorância e a maldade humana. Até onde isso vai permanecer.

Fátima Feitosa
Enviado por Fátima Feitosa em 20/08/2009
Reeditado em 22/08/2009
Código do texto: T1764821
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