QUEM SE LEMBRA DO ZÉ PADEIRO?

Osvaldo André de Mello*

É preciso ler o romance “Os Ratos”, de Dionélio Machado, para se entender o cenário e as cenas da minha infância e adolescência, nos anos 50 e 60.

O leiteiro tocava a buzina, anunciava-se na rua com o seu pregão: “Ó o leite! Ó o leite!” Em enormes leiteiras, diretamente das tetas das vacas, o leite vinha de charrete, era medido num canecão de folha e vendido ali mesmo, às portas das casas.

A lavadeira, a querida Nininha, lavava a roupa com sabão preto de bola, na fonte, e a batia na pedra e a punha a “quarar” e depois a secar na grama. O tintureiro, “Seu” Geraldo, buscava e entregava os ternos, em casa.

No inverno, passava um roceiro para vender pedras amareladas de açúcar “sumo”, bom para o peito. E a tecedeira para vender as suas colchas de lã feitas no tear.

As raras latas de produtos consumidos eram levadas ao folheiro, S.r Raposo, que as transformava em canecas e canecões. Quem quisesse um tacho de cobre, esperasse a passagem dos ciganos.

Naturalmente, tudo era aproveitado. Não se jogavam papéis fora. Os de presente ficavam abertos, sob o colchão, à espera de novo uso. Enxovais de bebê, calças, camisas, agasalhos, até meias adaptavam-se de uma para a geração seguinte. Guardava-se de um a tudo: botões, cordões, pregos, roupas e lençóis velhos para remendos... Pois tudo tinha serventia.

A sacola de fazer compras ( de lona, não de plástico ) ficava dependurada atrás da porta da cozinha. ( O plástico foi grande novidade e se chamava “matéria plástica” ). Comprava-se nas vendas, de caderneta. O pão do fim de semana, que complementava bolos, roscas e biscoitos caseiros, era comprado na sexta-feira e guardado numa sacola de pano.

O açougue não moía nem picava a carne. Fazia-o a dona de casa. O açougueiro Juza furava o pedaço de carne, com um agulhão, passando um cordão cru, por onde se segurava a peça. Depois, a carne passou a ser embrulhada em jornal, que a criançada juntava para faturar um dinheirinho, vendendo-o aos açougues.

Os doceiros seduziam o paladar, quando percorriam os passeios, apregoando a cocada branca, a cocada preta, a cocada de doce de leite, o quebra-queixo, os pirulitos na tábua... Ainda passa o último doceiro, em pleno 2009, mas a voz do pregão vem do fundo do tempo: “A cocada! A cocada!”

O fubá era comprado no “munho” do Lincoln Machado.

Só havia maçãs em Belo Horizonte.

Não entrava na cabeça de ninguém que se pudesse vender ou comprar: xuxu, couve, hortaliças em geral, incluindo cebolinha, salsa, taioba, ora pró nobis, e plantas de chá, e abacate, goiaba, mamão, manga... Quando, nos enormes quintais, não se produzisse algum item, o mesmo era buscado, graciosamente, no vizinho.

Brincava-se nas ruas: pelada, pique, “nêgo” fugido, mímica, roda, corda, maré, finca, bolinha de gude, pião, os escravos de jó, papagaio, rouba-bandeira, fazendas com boizinhos de xuxu... Os vizinhos, à boca da noite, reuniam-se às portas das casas para contar casos e com estes alimentavam a “alma” da cidade. As casas dormiam de porta destrancada, até que chegasse o último morador.

As procissões, as paradas, o reinado, os auditórios escolares, os circos, os parques, a chegada do trem, para o que se pagava entrada na estação, o carnaval de banhos, limões de cheiro, sangue do diabo e lança-perfume, as vacas estouradas, os pastéis de algodão e outras troças do 1º de Abril, a queima do judas, as festas juninas e as sessões de cinema ( para finalizar, porque o filme da época continua a passar na memória ) mobilizavam a população, instaurando um tempo e um espaço especiais para a festa.

Naqueles longes, o pão era vendido nas carrocinhas. As mais famosas: a azul do Rafael e a verde do Zé Padeiro. Desta eu tenho a honra de haver pintado de amarelo, na porta traseira: “Zé Padeiro – Pães duas vezes ao dia.” Grande honra para um adolescente sem banca de pintor.

A carroça, pequena padaria ambulante, parava, disputando o meio da rua com os postes de madeira da iluminação pública. Abria-se a porta. Em duas prateleiras, organizavam-se pães franceses, pães doces, pães de queijo, forrós, brevidades...

Como o Zé era nosso vizinho, a carroça figurava o depósito mais próximo, à noite e nos fins de semana, quando as padarias fechavam.

O Zé Padeiro, sua esposa Mariazinha ( a melhor salgadeira da paróquia ) e os muitos filhos moravam numa espécie de vila, cuja proprietária era a Dª Joíva. Ali, havia uma fonte de água salobra. Estas palavras “Joíva” e “salobra” me impressionaram muito.

De manhã, o Zé Padeiro deixava o pão embrulhado, onde fosse combinado. No alpendre, na porta da sala, na janela ou na mesa da cozinha. De tarde, a carroça chegava e o inesquecível amigo tocava a buzina, convocando os fregueses. A vizinhança fazia fila, conversava, convivia.

O Zé Padeiro não é apenas uma lembrança. Ele colaborou na construção de um tempo bom, de um mundo que acabou.

Publicado no Jornal “Agora” p. 4, 9 de julho de 2009.

*Osvaldo André de Mello nasceu em Divinópolis, estudou Artes Cênicas no Teatro Universitário em Belo Horizonte e voltou para Divinópolis, onde se formou em Letras. Sua primeira publicação foi aos dezenove anos, com A Palavra Inicial (1969), e o poeta publicou ainda Revelação do Acontecimento, Cantos para Flauta e Pássaro, Meditação da Carne, e A Poesia Mineira no Século XX, entre outros. No teatro, dirigiu peças de grandes autores, como T. S. Eliot, Nelson Rodrigues e Emily Dickinson. É responsável pela montagem e direção do espetáculo APARECIDA NOGUEIRA IN CONCERT e ENSINA-SE A VIVER.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 22/08/2009
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