COUROS

– Grande, grosso e duro, o da anta, respondeu meu pai ao ser perguntado qual o couro de caça que mais lhe chamara a atenção.

Ele fora natural do Rio Grande do Sul, mas grande fatia de sua existência passara-a em companhia de três irmãos em Posadas, na Argentina. Nessa experiência de sua juventude os quatro irmãos tiveram, talvez, os mais ricos aprendizados de sua vida. Cada qual aprendeu um ofício principal. Meu pai Mathias Albino fez-se seleiro (fabricante de selas e artigos rústicos em couro); o tio Fredolino, fabricava cerveja; o tio Pedro, foi padeiro e o tio Afonso, o mais novo, alfaiate. Isso lá pelos idos de l909, foram profissões da época e rentáveis. De l909 a l9l6, em que os quatro irmãos aventuraram-se por terras forasteiras, tornaram-se sete anos de aventuras épicas para todos eles.

Nas folgas da atividade profissional que cada um desenvolvia na comunidade posadina, faziam o amanho da terra, que fora sua profissão de nascença, produzindo cereais para o consumo próprio. Mas a cultura, a que mais se dedicavam, porque lhes rendia mais algum trocado, foi o plantio do fumo, de boa rentabilidade já na época.

O Egídio, um dos meus irmãos mais velhos, assistiu nosso pai em seu leito de morte. Contou-me algum tempo depois que ele falou sem parar até o último segundo de sua vida. Sereno e tranqüilo, contou com detalhes as caçadas que faziam em terras castelhanas.

– Foram setenta e oito pardos que matei em sete anos, contou ele. Antas nem lembro quantas, mas foram mais de cem as que nós abatemos na época.

– Mas para que tanta caça, pai – teria perguntado o Egídio.

– Meu filho, hoje para você matar um veado, tem que fazê-lo meio escondido e em segredo. Já não existe mais caça a não ser um ou outro quati. Naquela época a gente podia escolher a caça que queria. Havia muito bicho no mato e nos rios.

– Diga-me, pai, qual o couro de animal selvagem que mais lhe agradou em sua profissão de seleiro?

– O couro da anta, meu filho, teria respondido ele prontamente. É o couro mais difícil de trabalhar porque é enorme, é grosso e muito duro para cortar. Mas, em compensação eu moldava de cada couro de anta uma carona, cuja peça era vendida a bom preço para a elite dos cavaleiros da vila.

E, embebido nessas recordações, talvez as mais excitantes de sua vida, meu pai expirou, vítima do rompimento da veia aorta, cinco horas após o fatídico e infausto acontecimento.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 23/08/2009
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