Saga inacabada da menina esquisita

Era uma vez uma menina esquisita. Por que ela era esquisita? Ora, porque ela não via como os outros. Seus olhos viam coisas diferentes, e isso sempre lhe causava a maior confusão! Mas isso era noutros tempos, quando ela ainda era ingênua e desembestava a falar tudo o que via, esforçando-se o máximo que podia para dar todas as tonalidades de como via. Naturalmente as pessoas começaram a achar que ela era meio louca. No mínimo,indiscreta! Demorou para a menina esquisita descobrir que isso acontecia porque ela acabava sendo incoerente: onde as pessoas viam generosidade, ela via egoísmo. Onde viam o prodígio, ela via oportunismo. Onde viam inocência, ela via dissimulação. "Será que meus olhos estão tortos" - ela pensava, enquanto se examinava bem de perto no espelho. "Ou será que meus pensamentos é que são tortos?" esta possibilidade a deixava ainda mais preocupada quando via que com seus olhos não havia nada de errado: eles eram aparentemente perfeitos: via o azul como azul, o vermelho como vermelho, e nunca confundiu o amarelo com o roxo - por mais que achasse de péssimo gosto vê-los juntos. O degradê das cores também não era problema: conseguia sentir a diferença do claro mais claro até o escuro mais escuro. Então, qual era o problema? Só podia ser pensamentos tortos, que a faziam confundir as intenções das pessoas com o seu contrário.

Aos poucos, acostumando-se com este raciocínio, até que foi conseguindo se adaptar às coisas que as pessoas coerentes achavam. O exercício que fazia consistia em discriminar em si mesma o que ela achava de determinada pessoa, atitude ou situação. Então, traduzia em seu contrário. E tudo ficava certo! Às vezes até conseguia se convencer da opinião formulada, achando-se uma boba por pensar um pensamento tão diferente, à princípio. Este treino, ela pensava, a encaminhava aos pensamentos certos, e ela chamava esse processo de "endireitamento do achismo".

Com o tempo, as pessoas se esqueceram de que ela tinha pensamentos tortos, e ela até que pareceu bem menos esquisita. Às vezes demorava mais do que o normal para responder à alguém, é claro, porque tinha que passar por todo o caminho de endireitamento do achismo para chegar ao ponto em que a maior parte das pessoas viam como um caminho reto de pensamento, uma conclusão sensata...

Algumas vezes ela tinha uma recaída e suas esquisitices pareciam voltar com bastante força. Tudo aquilo que as pessoas chamavam de coerente e que achavam agradável, louvável, bondoso, e elevavam ao mais alto patamar, a menina esquisita gritava seu contrário, bem alto dentro dela, e ela acabava ficando bem irritada! "Por que esses pensamentos tortos gritavam tanto?" , "Por que eles impediam de pensar claro e certo como todo mundo?". E quando eles gritavam alto, até faziam com que ela sentisse enjôo, com a cabeça pesada e o coração apertado... e a menina esquisita ficava cada vez mais esquisita. Para que as pessoas sensatas não percebessem sua esquisitisse, ela saia, sorrindo, inventando que tinha acabado de lembrar que tinha esquecido que devia fazer algo importante. Quando estava com os amigos da escola a desculpa era a família; quando estava com sua família, usava a desculpa da escola; quando foi crescendo, usava a desculpa do trabalho para o namorado e do namorado com o pessoal do trabalho. Se não saísse, tinha medo da proporção da irritação que sentia.

Mas o que a menina esquisita podia fazer para aliviar a irritação e acalmar os pensamentos tortos? Essa resposta, ela demorou muito para encontrar... Como ninguém tem paciência para trilhar todos os meandros dos descaminhos de alguém que demorou muito para chegar a uma solução para seu problema (primeiro porque ninguém se interessa pelos problemas dos outros de graça, e segundo, bem, trata-se de uma menina esquisita, não nos esqueçamos disto!) - vou descrever os descaminhos da menina esquisita como se eles fossem bem curtinhos, traduzindo, digamos, "hectares em quarteirões".

1) Trancar-se no quarto e berrar, indignada, em frente à sua imagem no espelho, o que realmente achava das coisas em seus achismos. Mas esta solução era problemática: não funcionava se tivesse alguém em casa, ou doutro lado da rua, porque podiam espiar o que ela estava fazendo e descobririam sua esquisitisse. Tentou, então, falar na frente do espelho em vez de berrar. Mas mesmo assim temia a vergonha que sentiria caso a descobrissem. Então, achou melhor pensar noutra solução...

2) Escrever páginas e páginas de pensamentos tortos num diário. Mas esta também não era a melhor alternativa. Primeiro porque isso lhe tomava muito tempo: é bem mais rápido falar do que escrever, e para dar conta de todos os pensamentis tortos até esvaziar sua irritação esquisita tinha que escrever muito. Segundo, porque por mais que escondesse seu diário nos lugares mais inencontráveis possíveis, ela morria de medo de alguém encontrá-lo enquanto ela estivesse fora. Daí não só a achariam esquisita, mas teriam a certeza de que ela era louca! Teriam provas, elaboradas por seu próprio punho. Não chegou ao segundo diário. Quando o primeiro estava quase acabando, ficou maluca de pensar o que faria com ele... Não podia ficar acumulando diários porque eles seriam facilmente encontrados. Também receava se livrar deles: teria que queimá-los para não sobrar nenhum vestígio deles. E se alguém a pegasse fazendo isso? E se acontecesse algo a ela e ela morresse? As pessoas teriam que fuçar nas coisas dela e acabariam descobrindo tudo! E essa idéia não era nada torta, mas bem factível, e esse medo era mais intolerável do que ser ouvida proferindo sandices... E logo ela teve que pensar noutra solução...

3) "Bom, poderia escrever no computador" - ela pensou. Mas não poderia salvar os arquivos, porque, assim como os diários, eles poderiam ser encontrados. O computador poderia ser roubado, e seus pensamentos tortos descobertos... Mas será que funcionaria escrever sem registrar? Será que aliviaria sua irritação com a tortisse de seus pensamentos? Ela tentou: escrevia e depois apagava... Trabalho inútil, tal como aquele que se faz quando se anda pra lugar nenhum numa esteira de academia... Tentou, mas não funcionou... Parecia que, de alguma forma, o perigo de ser pega aliviava mais facilmente sua irritação, deixando espaço aos pensamentos para endireitar seus achismos... Foi então que achou a solução: escreveria mas não salvaria nenhum arquivo em seu computador. Somente publicaria sob um pseudônimo... Mas qual seria ele? Pensou, pensou, até que lhe veio um que parecia bom, tal como uma japonesinha judiada que sentia ser... Misto de nome judeu, misto de japonês... Hannah Higa parecia ser satisfatório...

Será que isso vai dar certo? É possível endireitar achismos desta forma? Será que a menina esquisita continua bancando a ingênua?

Hannah Higa
Enviado por Hannah Higa em 28/08/2009
Código do texto: T1778758
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