O Homem Mais Sábio do Mundo e a Sra. Dialética

O homem mais sábio do mundo sempre admirara as idéias. Em sua bela abstração, na completude de sua coerência, quão formosas eram as idéias! Por certo, ele sabia muito... Conhecia as idéias de muitos e tinha suas próprias grandes idéias. E as grandes idéias dos outros ele as compreendia com perfeição e, por vezes, as aperfeiçoava, valendo-se, apenas, da arte de pensar.

O homem mais sábio do mundo conhecia muitos nomes e podia citá-los com freqüência. Conhecia muitas citações e as empregava com maestria. Às vezes, parecia conhecer intimamente Hegel, Kant, Platão, Comte, Hobbes, Rousseau, Maquiavel, Sartre... No fundo e apesar de tudo, via-se como parte daquele mundo abstrato que habitavam todos esses nomes.

O homem mais sábio do mundo, por vezes, impressionava bastante. Devorara muitos e muitos livros, mas não tantos quanto outros poderiam crer que ele lera. Conhecia bem a Filosofia e passeava com alguma destreza pela Teologia, apesar de não dominá-la. Amava os debates e, sempre apaixonadamente, tomava parte deles. Incomodava-o não ter opinião formada sobre algum assunto, fosse ele qual fosse -- a menos, é claro, que se tratasse de um assunto de menor importância, que preferisse legar a outros.

Há tempos, conhecera uma certa Sra. Dialética e, com ela, chegara a formular uma teoria do universo. A Sra. Dialética era arrojada e culta. Muito lhe disse sobre ela, depois, o Sr. Hegel. Ficara sabendo que, assim como o homem mais sábio do mundo, ela também apreciava as idéias. Numa ocasião, um certo senhor de barba havia tentado fazer a Sra. Dialética passear pelo mundo dos fatos em vestes vermelhas, mas ela não gostara nada do passeio... Se fosse possível, ela faria queixa ao Sr. Hegel daquele senhor barbudo, pois ele não a compreendia bem.

Já o homem mais sábio do mundo conhecia muito bem a Sra. Dialética e sempre apreciara sua visão da realidade. Ambos se tornaram grandes amigos e ele sempre a encontrava. As idéias daquela senhora eram de alta complexidade, mas, ainda assim, facilmente compreensíveis para o homem mais sábio do mundo. Afinal, ele era o homem mais sábio do mundo. E, por compreender tão bem essas idéias, ele as aplicava a uma infinidade de coisas: desde intrincados problemas de trabalho a fatos corriqueiros como a preparação de uma xícara de café.

Eu disse fatos? Mas, então, o homem mais sábio do mundo gostava de fatos, afinal? A verdade é que ele, talvez, até apreciasse muitos deles, mas, no fundo, sempre os enxergava como idéias. O fato era sempre a reprodução de uma idéia, pensava ele, lembrando-se do Sr. Platão... E, às vezes, os fatos em si não existiam: só havia as idéias por meio das quais os enxergamos...

O homem mais sábio do mundo, apesar de ter lá suas fragilidades emocionais, vivia bem desse jeito. Mas devo admitir que, às vezes, desejava poder excursionar pelo mundo dos fatos. Mas achava que jamais poderia fazê-lo... Qual não foi sua surpresa, então, quando, um dia, os fatos lhe bateram à porta?

A partir daí, o homem mais sábio do mundo teve de aprender a lidar com os fatos. Sempre os idealizava, é verdade, mas seguia tropeçando e aprendendo -- ou não -- com eles. Nessa época, descobriu que não era tão sábio quanto, noutros tempos, pensara ser.

Foi por meio da religião que descobriu que não era tão sábio quanto pensava. Não me entendam mal: à sua maneira, o homem mais sábio do mundo sempre crera em Deus e sempre fôra religioso. Mas tinha um sentido peculiar de religião: como Deus sempre o compreendera bem, ele sempre se achara capaz de compreender Deus. Pensava ter licença para pecar, pois, no fundo, cria que as leis e os pecados cabiam àqueles não tão sábios quanto ele. Mas o homem mais sábio do mundo, do alto de sua sabedoria e inteligência, acreditava poder interpretar as leis divinas e, assim, por meio de arrojadas teorias, se esquivava da responsabilidade por seus erros e pecados.

Quando caiu em si e percebeu que não era tão sábio quanto pensava, o homem mais sábio do mundo percebeu que não tinha licença para pecar. Suas falhas podiam ser perdoadas por Deus e mesmo pelos homens, mas seriam, ainda assim, falhas e ele não tinha o direito sobrenatural de cometê-las a seu bel-prazer.

Tudo isso aconteceu quando o homem mais sábio do mundo chegou à maturidade. Decidiu-se, então, a aperfeiçoar-se e a lapidar melhor seu espírito, entendendo-se bem com Deus. Deus sempre o compreendera, mas ele apenas pensara, no passado, compreender Deus... Nesse tempo, afastou-se da Sra. Dialética e deixou de conversar com ela sobre o mundo.

Agora mais maduro, o homem mais sábio do mundo começou a excursionar, timidamente, pelos fatos. Percebeu a necessidade de o fazer e, então, deixou de gabar-se de ser o mais sábio do mundo. Não que ele não fosse sábio: possivelmente o era, mas tinha ainda muito o que aprender. E, por outro lado, não conhecia tanto o mundo como antes pensara e, certamente, haveria nele alguém de maior sabedoria.

Precisava, agora, ordenar sua vida. O homem, antes o mais sábio do mundo, fizera as pazes com Deus e resolvera dar aos fatos uma chance. Também era hora -- por que não -- de renovar as idéias. E, agora, talvez, quem sabe, pudesse conversar de novo com a Sra. Dialética?

Felipe Cola
Enviado por Felipe Cola em 24/06/2006
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