Minha Dona Francisca

Nascemos com quase um século de diferença, mas podemos dizer que temos um caso de amor. Quer dizer, eu posso dizer, pois não sei se sou correspondido, mas sei que sou apaixonado e procuro cuidar dela ao menos um pouquinho. E vê-la bastante.

Conheci-a uns 50 anos atrás, ou mais, numa viagem com a Serrana (bem antes da Reunidas), em que passei a maior parte do tempo colocando os bofes pra fora, sem curtir coisa alguma. Algo como quatro horas depois, chegava a Joinville. Parada para lavar a parte externa traseira do ônibus antes de entrar na cidade! Depois, começou a paixão. O traçado e o pavimento ainda eram os mesmos do Século 19, o que significava curva terminando em curva, que entrava em outra curva e um chão firme, por décadas solidificado. Vacas no meio do caminho não eram novidade, e havia alguns trechos em que, encontrando um caminhão, era preciso manobrar um tanto. Isso quando a neblina não obrigava a procurar o traçado a pé.

Depois, foram anos e anos de obras para melhorar seu traçado, época em que, com meu fusquinha 66, transitava nela para namorar em Joinville. Com chuva, ficava quase, ou bem intransitável. Bem, o amor justifica e explica tudo!

Por mais de duas mil vezes trafeguei por ela e, em duas ocasiões, a pé, de São Bento a Pirabeiraba. Conheci cada espaço, cada beleza e cada agressão que recebia. Não havia como não me envolver e me apaixonar. Durante um ano, fotografei as flores de suas margens, resultando em uma mostra (Os Segredos da Dona Francisca) que percorreu várias cidades. Poucas semanas antes da última exposição, em Florianópolis, a tragédia das águas que destruiu trechos enormes dela. Quem não viu, não queira ver.

Não entendo nada de engenharia, mas a última revitalização ficou um brinco: bonita, segura, sem deixar de ser sensualmente sinuosa. Na época de sua inauguração, criei a campanha “Deixe a Dona Francisca linda e limpa”, mais uma explícita declaração de amor para ver se ela entendia.

Na quarta-feira passada, trafegando por ela, tive a certeza que entendeu e correspondeu: por alguma razão, antecipou a primavera e floriu suas baixadas, suas margens. Para onde quer que olhasse, havia flores limpas e brilhantes. Flores que sucedem a tempestade. Acho que estava dizendo: “Também te amo”. E eu acreditei.