23 ALEGORIA DA SOMBRA

Outro dia, indo a caminhar por uma rua central de Fortaleza, notei que pisava sobre a minha própria sombra. Pelo visto, já que a canícula me chicoteava o rosto, as horas começavam a saltar dos beirais da manhã e adentravam nos portões da tarde.

Um passo aqui, outra passada acolá e, apesar de posta por debaixo, pisoteada em cheio, a sombra sempre me seguia o rumo. Tão fiel e insistente, será que ela gostaria de andar rasteira, horizontalmente, na sua posição inferior e submissa? Refleti, raciocinei com força, associei minha sombra às sombras que votam sem refletir.

Pensei num jeito novo de como colocaria minha sombra lado a lado com a minha pessoa. Matutei, mas em vão. Matutei mais ainda e, sem criatividade, quedei-me impossibilitado de cambiar a situação incômoda de andar somente por cima, enquanto, sonâmbula, minha silhueta, espectro de pouca presença, rastejava o chão. Deitado, quem sabe, sob aquele sol a pino, eu talvez galgasse meu status de igualdade, rente à sombra rastejante.

Lá para mais adiante, numa brisa de intuição, foi daí que me dei conta de que era, eu próprio, o governante de mim mesmo. Era, pois, o dono, o tirano do volume do meu corpo. Assim, sendo administrador de fardo próprio, dele poderia eu fazer uso e abuso, triturando-lhe o reflexo? Até, sem me aperceber, como teria o direito de humilhar a minha pobre e aviltada sombra? Ainda que fosse possível, embora moralmente desaconselhável.

Contudo, os tubarões, que engolem outros peixes, e os muito ricos, assim como os governantes desalmados que pisam na sombra – corpo e alma – dos seus governados, não têm razão quando procedem de igual modo. Ambos, ditadores e patrões muito poderosos, deveriam era desconfiar e compreender que, se eles se forram de sombra frondosa e larga, na esteira do povo, esta mesma sombra é que lhes serve de esteio para sustentar o acúmulo de fábulas como a grande indústria, o alto comércio, o capital financeiro dos cartéis e os latifúndios imensuráveis.

Desta forma, em assim pensando, sombra alguma lá é capacho!... Ao contrário, a sombra é o esteio, a base ou sopé do arcabouço. Qualquer sombra careceria era de bons governantes, bons caminheiros, empregadores menos egoístas e mesmo de pés solidários, não-violentos, que compartilhem o espaço da igualdade responsável, ao longo do itinerário social da caminhada. Mas que isto não prospere só no papel burocrático, apenas como alegoria, talvez metáfora do tamanho do descaramento dos mandachuvas que pisoteiam a sombra das multidões.

Fort., 29/09/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 29/09/2009
Reeditado em 02/03/2010
Código do texto: T1837653
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