CINCO DE NOVEMBRO: DIA DO ESCRIVÃO!

Sem me considerar um “Scribanus” e/ou, “Espiteta”, todavia, um seguidor de Pero Vaz de Caminha, no prosseguir, hodierno, da sua função de Escrivão, presto uma homenagem aos meus colegas Escrivães de Polícia e, a quem possa interessar, relatando algumas situações em que, como Escrivão de Polícia nas Minas Gerais, me vi envolvido, tais como:

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Certo dia, estava tomando as declarações de uma jovem que fora seduzida pelo namorado, num inquérito de sedução, com o pai dela presente.

Tomada às declarações, preenchi um auto de corpo de delito o entregando ao genitor da mocinha com a observação de levá-la a dois médicos para eles a examinarem e preencherem o laudo.

O pai da moça disse de forma um pouco agressiva:

"Não vou gastar dinheiro com essa fedelha pagando médicos, vou sair e você mesmo faça o exame nela na poltrona em que ela está sentada" assim dizendo, saiu e encostou a porta!

Passado o momento da surpresa, chamei o pai da jovem de volta, fazendo o mesmo com o delegado e, juntos, convencemos o pai da moça a levá-la aos médicos conforme manda a lei.

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Em um final de ano, na cidade de Curvelo-MG e, num bairro, fui avisado de que, na última noite do ano, transcorreria uma partida de futebol entre casados e solteiros, como era comum, ano após ano, na avenida central que tinha o mesmo nome do bairro.

Sendo solicitado pelos moradores para ajudá-los, em virtude de um sargento da rádio patrulha ter dito que, naquele ano, não deixaria ser interrompida a avenida para o futebol referido, pedi autorização especial para a partida de futebol, mas, me foi indeferida pelo delegado.

Procurei um subtenente meu amigo morador perto do bairro e, Ele se propôs a ajudar a todos, indo, também, jogar futebol, sendo escalado entre os casados por solicitação minha, apesar de não ser morador dali.

Quando o futebol começou, a rádio patrulha apareceu com a sirene aberta, após parar, dela, desceu um sargento que, antes de poder falar qualquer coisa, teve que se perfilar em continência para o subtenente, seu superior hierárquico, que o mandou procurar bandidos na região da zona boêmia e, não ali, onde só havia homens e mulheres honestos.

Vitória! Com o futebol continuando até o raiar do dia.

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Pedi transferência para Manhuaçu com a aquiescência do delegado de lá, porém, fui traído e mandado para a cidade de Divino, onde nunca tivera antes outro policial civil lotado.

Com muita dificuldade, montei o cartório naquela cidade onde, antes, o escrivão era “ad-hoc” sendo um sargento PM.

O delegado era um tenente reformado com fama de bravo, mas, ficou meu amigo e, me dava bem com ele e com os militares ali destacados.

Durante uma tomada de depoimentos de testemunhas, o cabo do destacamento disse-me para tomar cuidado com uma das testemunhas, de nome Cassimiro, por ser o mesmo muito ignorante e "avalentoado".

No cartório estava o delegado, dois cabos e dois soldados. Um dos cabos tinha acabado de prestar depoimentos quando passei a tomar os depoimentos de Cassimiro, ao final, "maldosamente e com ironia" lhe disse:

"Pode assinar embaixo do cabo!”

Cassimiro levantou-se da cadeira e começou a falar mal todo tipo de palavrão, exigindo que quisesse respeito e, que não era homem para ficar debaixo de nenhum cabo.

O delegado, de imediato, deu-lhe voz de prisão em flagrante delito por desacato, momento em que intervi dizendo que, se alguém tivesse que ser preso seria Eu, por fazer tal tipo de brincadeira, mesmo sabendo, de antemão, da ignorância conhecida da testemunha.

Todos os policiais saíram do cartório lá me deixando e Cassimiro, o qual acabou sendo convencido a assinar, depois das explicações lhe dada a respeito da brincadeira, não deixando, no entanto, de chamá-lo de ignorante ou, pelo menos, bobo, ao arriscar-se a ser preso por uma coisa tão simples e sem maior importância.

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De Divino, fui transferido para Ipatinga, onde fui muito perseguido pelo delegado regional sem nenhuma razão plausível. Desde o início ficou patente de que não me daria bem com ele, pessoa que tratava aos subordinados como um ditador e, era muito truculento. As coisas entre nós foram piorando quando ele deixou claro que iria colocar um escrivão, de nível abaixo do meu, como chefe dos cartórios, apenas pelo fato do mesmo ser maçom.

Nos finais de semana, ele me colocava de plantão, porém, não fazia o mesmo com os demais escrivães, obrigou-me a mudar para Ipatinga enquanto o seu protegido deixou morando em Cel. Fabriciano, vivia dizendo que ia me transferir para Pedra Azul, terra dele, para eu ter que levar a família a médicos na Bahia quando precisasse de facultativos.

Tudo que ocorria de errado sempre me culpava. Relatar aqui as perversidades por ele cometida contra mim, seria necessário quase um volume de centenas de folhas.

Fui agüentando e, trabalhando dobrado, tendo os cuidados de não dar margens para ser punido. Um dia, resolvi reagir usando a inteligência e as experiências dos sofrimentos passados, comecei a escrever poesia a ponto de ser aceito e, ter poesias publicadas, várias vezes, nos jornais locais, chegando a ser Membro aspirante da Academia de Letras de Ipatinga, sem nunca ter estado naquela academia, meu diploma me foi entregue na delegacia.

Com o artifício da poesia e pequenos textos, passei a colocá-los num quadro mural da delegacia, local de fácil acesso aos policiais e, ao público em geral, poemas e textos jocosos que só faltavam falar que eram feitos e dirigidos diretamente àquela autoridade, que nada podia fazer por que não estava escrito, claramente, o seu nome.

Um dia, estava escrevendo um texto e um meu colega, detrás de minha cadeira, começou a ler, às escondidas, chamou o delegado chefe, ele veio leu até onde eu tinha escrito, destacou um delegado para ficar vigiando e me disse:

"Continue a escrever a partir de onde eu li e, pregue no quadro mural porque, no intervalo, estarei mandando datilografar uma punição para você, com dez dias de suspensão", saindo em seguida.

Calmamente, continuei a escrever, ao final, escrevi com letras garrafais:

"Trata-se de Joaquim Silvério dos Reis, traidor de Tiradentes!". Datei, assinei e coloquei no quadro mural, onde já se encontravam vários policiais à espera, bem como alguns cidadãos.

Momentos depois, o delegado chegou com a punição datilografada numa folha de papel, e começou a ler o texto, a principio bastante carrancudo para, ao final, fazer o seguinte comentário:

Você é mesmo um filho da Puta! Rasgando a portaria que redigira para a punição.

Tão logo ele ia sair para o gabinete, lhe disse:

Senhor Delegado! O senhor deveria mandar datilografar outra portaria punitiva.

Para você? Perguntou o delegado!

Não... Para o senhor! Que acabou de dizer que a minha mãe é uma Puta o que não condiz com o tratamento devido a um seu subordinado.

“Queimando as ventas e bufando”, ele entrou no seu gabinete batendo a porta.

Ele tinha tão má índole que perseguiu um detetive até ele suicidar e ainda proibiu os colegas de velá-lo ou, ir ao sepultamento. Mandou prender a própria esposa por razões de somenos gravidade.

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Passados uns dias, houve uma revolta dos presos na cadeia, fundos da delegacia, com queima de colchões e retenção de dois reféns, a revolta era dirigida por um perigoso criminoso do "Comando Vermelho" que fora àquela cidade a fim de assassinar o próprio avô, o que conseguira.

Os amotinados exigiam apenas melhoria na alimentação e a transferência de alguns para um presídio maior.

O delegado disse que os atenderia se eles trocassem os reféns por um policial, eles aceitaram, entretanto, ao saberem do delegado, na presença da imprensa e de muita gente curiosa que estava por perto, que a troca seria feita com o delegado me entregando como garantia de que ia cumprir a parte dele, o criminoso dirigente do movimento, disse alto e em tom definitivo:

“Não aceitamos, porque o senhor deixará Ele morrer em nossas mãos sem cumprir o trato, conhecemos bem o escrivão e sabemos que é honesto e muito amigo dos presos, já tendo socorrido muitos de nós com remédios, além de sempre atender com humanidade aos nossos familiares."

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Num domingo, em outra delegacia, fui chamado para lavrar o auto de prisão em flagrante delito de um ladrão e, de uma receptadora. Lá chegando, encontrei o delegado que estava de saída para Belo-Horizonte, deixando a ordem para fazer o flagrante que ele assinaria na volta.

No cartório estava uma senhora com um grande rádio toca-fitas nas mãos e, de pé, ao lado do soldado Enrico, o policial militar disse que o sargento Damas tinha ido buscar o ladrão na cadeia de Coronel Fabriciano e que a mulher era uma receptadora e, não poderia ficar sentada por estar de castigo com o produto do furto na mão.

Determinei que a mulher ocupasse uma das cadeiras e coloca-se o rádio sobre a mesa, com isso, recebendo o desagrado do soldado referido. No local estava, também, o patrão da mulher a acompanhando e dizendo que ela era uma excelente funcionária, também estavam no cartório duas testemunhas, enquanto o soldado Enrico ficava, a todo o momento, chateando a todos dizendo que ficara a noite toda atrás do ladrão e que receptador era igual a ladrão.

Em determinado momento, olhando, detalhadamente, a ocorrência policial do evento, pedi ao soldado que fosse até a casa da vitima buscá-la para prestar declarações, tendo o soldado redargüido que a vítima não era preciso declarar no auto daquela prisão, só atendendo após muita insistência minha.

Tão logo o soldado saiu com uma das viaturas, mandei a receptadora e as testemunhas irem embora lhes dizendo que não ia fazer nenhum flagrante, tendo a mulher dito que tinha que viajar para São Paulo, sem data marcada para o retorno, ocasião que lhe disse que ela não seria indiciada.

Como esperava, pouco tempo depois, o soldado voltou dizendo que a vítima não quisera acompanhá-lo até a delegacia e ele não teve como forçá-la, desviando o olhar perguntou:

"Cadê a receptadora e as testemunhas?"

Foram liberadas! Respondi.

Muito nervoso Enrico pediu para usar o telefone e disse ao seu superior, do outro lado da linha, talvez um capitão:

"O Escrivão soltou à receptadora e mandou as testemunhas saírem, só falta ele soltar o ladrão quando o sargento chegar".

Saindo da sala, não escutei o resto da conversa, voltando depois quando Enrico já estava na calçada à espera do sargento, que chegou logo depois, ao subirem as escadas, ouvi Enrico contar o caso e, o sargento responder: "Conheço muito bem a capacidade do Escrivão! Se ele soltou foi porque nós erramos em alguma coisa”.

Ao entrar no cartório, o sargento disse que não teve como trazer o preso por não ter encontrado o carcereiro, comigo lhe dizendo: “Dê-me a liberação, lhe entregue pelo delegado, que eu soltarei o ”preso”, já que estou indo para Coronel Fabriciano", sendo atendido pelo sargento.

Quando o sargento ia sair, resolvi olhe contar a razão de não ter feito o flagrante, sem permitir que o soldado Enrico escutasse, dizendo ao graduado o seguinte:

Não houve prisão em flagrante de furto, nem houve consequentemente, receptação, porque a vitima é mãe do conduzido que pegou o rádio em casa de ambos às escondidas, poderíamos ter feito o inquérito se a vitima tivesse comparecido, todavia, ela recusou a vir, dessa forma, o artigo 155 do Código Penal diz que ele é isento de pena por ser filho da vitima.

Satisfeito, o sargento foi embora sem comentar nada com ninguém. No dia seguinte, quando cheguei à delegacia, o delegado, bastante nervoso, me dispensou alegando ter sido desobedecido, mas, teve que pedir desculpas ao ver, em letras vermelhas e garrafais, os motivos da não feitura do flagrante, lá inserida, limitando-se a dizer:

"Desculpe-me, não tinha visto, anteriormente, a ocorrência".

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Sempre que algum caso novo chegava ao gabinete dos delegados, tinha por hábito consultar os meus arquivos, leis decretos e outros compêndios, na intenção de sempre antecipar uma solução que o fato viesse a requerer, bem como, não me deixar levar pela euforia de algum "sabe tudo" sempre querendo ditar às normas e execuções cartorárias... Isso o fazia sempre!

Numa tarde, o gabinete estava cheio de policiais militares, sob o comando de um capitão, bem como, vários aparelhos elétricos de contrabando, com dois homens algemados explicando o país onde tinham adquirido a “muamba’ e, como pensavam em vendê-la no Vale do Aço”.

Fui consultar os meus arquivos e, pouco tempo depois, chegaram ao cartório os dois presos, escoltados pelos policiais, com o delegado determinando a lavratura do flagrante.

Disse-lhe que o flagrante poderia ser deixado para ser lavrado na manhã seguinte, ao que o delegado, embora seu amigo, me interpelou dizendo:

"Não me interessa a sua evasiva, quero ser obedecido e você fará o flagrante de qualquer jeito, nem que tenha que lhe dar voz de prisão por desobediência".

Calma doutor! Obtemperei

Paciência, uma ova! Exijo obediência, alegou a autoridade.

Calmo, porque já sabia de antemão o que ocorreria, lhe disse:

"Eu queria evitar um vexame para o senhor na frente dos policiais militares, adiando a feitura do auto, porque, na verdade, o senhor não pode autuar estes dois homens”.

Que é isso? Disse o Delegado, você não estudou direito nem entende de leis mais do que eu para me responder dessa forma!

Tranquilamente, expliquei àquela autoridade, na presença de todos, que os crimes de contrabando eram da alçada da Policia Federal, conforme tais e tais artigos, dizendo-lhe: O que o senhor tem a fazer é, simplesmente, telefonar para Governador Valadares que os federais tomarão conta do caso.

Meio sem graça, todavia, vencido pelos artigos da lei lhes mostrados, a Policia Federal foi chamada e autuou os dois na mesma sala do meu cartório, sem a presença dele que foi para casa descansar para o "batente" do dia seguinte.

Na manhã seguinte, o delegado reclamou comigo por ter sido, como ele disse, "desmoralizado na presença do capitão e dos soldados", recebendo como resposta que fora tentando adiar a lavratura do flagrante justamente para ganhar o tempo necessário para orientá-lo, recebendo como resposta que, mesmo assim, eu deveria ter obedecido e feito o auto, ao término dele, quando ficassem a sós, a policia federal seria chamada e o auto destruído.

Provocado daquela forma, lhe respondi:

Doutor! “Prefiro ser escravo da lei de que das autoridades ou dos homens!”, o delegado preferiu manter-se calado saindo para o seu gabinete.

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Um dia, estando com pouco serviço, passei a escrever uma relação de despesas absurdas que eram feitas pelo Estado e União, com referência a pequenos ilícitos penais, onde toda a máquina do Estado, do mais humilde detetive ou soldado até os magistrados, passando por viaturas, promotores, correios, funcionários da PM, policia civil, justiça pública, papeis, telefones, energia elétrica e outros, culminando por dirigir-me ao Presidente da República, onde apresentei, também, soluções alternativas das penas e multas para os que chamavam de "pequenos crimes", ao final de várias páginas, fez a remessa, via correios, recebendo, pouco tempo depois, uma carta da então Ministra Zoélia Calmosa de Milo, lhe informando que a idéia era boa e que fora encaminhado ao departamento legislativo apropriado.

Esqueceu-se por completo daquela carta até que, anos depois, ao ir à delegacia, um delegado lhe disse:

"Amigo! A Lei da Justiça de Pequenas Causas foi toda baseada naquela carta que você escreveu e mostrou-me."

Fiquei meio deslumbrado ao recordar-me de como escrevera a carta referida e, o sucesso dela, entretanto, não fiz nenhum comentário nem me interessei mais pelo assunto, acreditando que era comum, neste país, as pessoas usarem as outra para conseguirem algo, sem dar nada em troca, pelo menos um singelo reconhecimento.

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Sem me considerar uma “mola-mestre”, me coloco ao dispor, esperando, com esse texto, ter ajudado a alguém em situações esdrúxulas como às que, comigo, transcorreram no passado.

Por razões óbvias, omiti nomes dos envolvidos.

Observação: Apesar dos meus reclames, a Polícia Civil de Minas Gerais tinha e, continua tendo, excelentes Delegados de Polícia de moral inatacada e, lídimos em idoneidade! Como a maioria, com a qual, com Eles, trabalhei.

Sebastião Antônio BARACHO.

conanbaracho@uol.com.br

Escrivão de Polícia (MG)