TOMBO HISTÓRICO

Estávamos no ano de 1970 e eu já trabalhava na Imobiliária desde 1968 em plena ditadura. Já havia presenciado vários conflitos de rua entre tropas do Exército e civis, entre eles estudantes universitários. Tive que correr, muitas vezes para procurar um lugar seguro, durante as minhas saídas para fazer alguns serviços externos da firma e quase sempre tropeça e caia. Certa vez, ao voltar do Banco, encontrei a Praça Ramos de Azevedo completamente ocupada por tanques e cavalaria e não conseguia me abrigar, pois todas as lojas estavam fechadas. Segui pela Rua Conselheiro Crispiniano, entrei na Rua Sete de Abril, sempre correndo, entrei na Rua Dom José de barros e de lá cheguei à Rua 24 de maio, onde trabalhava, nos altos da Galeria do Centro. Foi um dia terrível, de grande susto. Quando já era noite é que pude sair do escritório e chegar em casa. Outra ocasião, ao chegar ao largo do Paissandu com Av. São João, havia uma revolta de estudantes versos polícia, da qual restaram muitos carros incendiados. Em nova correria consegui chegar ao escritório, depois de nova aterrissagem, o que estava se tornando freqüente nas minhas correrias, mas nunca desistia de meus saltos altos. Muitas vezes chequei em casa com os olhos vermelhos e irritados pela fumaça do gás lacrimogêneo. Eram dias difíceis, mas eu precisava trabalhar para manter a família. Meu marido estava doente e meu filho mais velho, com dezoito anos, preso no quartel da Aeronáutica.

Trabalhando na imobiliária já há dois anos, elaborava todos os contratos de locação e conhecia a lei do inquilinato muito bem. Isto me valia muito prestígio com meu chefe. Uma ocasião pediu-me para preparar uma minuta de contrato de imóvel que o Consulado da antiga Iugoslávia estava querendo alugar. Eu estava acostumada a fazer contratos, com inúmeras cláusulas onde o locatário tinha muitas obrigações e o locador muito poucas, como sempre acontece.

Sabia bem argumentar os termos dos contratos, dentro da lei, ficando o locatário convencido de que estava fazendo uma boa transação, rigorosamente dentro da lei. Não havia falcatrua, era pura e simplesmente a interpretação da lei.

Foram marcados dia e hora da entrevista com o referido Cônsul. Lá fui eu, com minha porta documentos e vestindo um bonito conjunto “príncipe de galis”, verde escuro e preto, constando de saia, colete, blusa preta e um mantô, na altura da saia (era inverno) e sapatos pretos de salto “cinco” bem fininho. Naquele dia estava me sentindo a perfeita executiva. Fui recebida pelo próprio Cônsul. Lemos e discutimos as condições do contrato e deixei a minuta com ele para posterior aprovação. Encerrada a entrevista, levou-me até a porta do escritório e nos despedimos. Ele entrou e eu dirigi-me ao hall dos elevadores. Ouvi a campainha do elevador chegando e me apressei, sem me dar conta que o piso era de mármore. Na minha pressa escorreguei, levantei voo, caindo sentada, mas de cabeça erguida, com toda classe de uma executiva (valeu-me a prática dos tombos anteriores). Ouvi uma porta se abrindo e alguém me ajudando a levantar e perguntando se estava machucada. Era, nada mais nada menos, do que o Cônsul que gentilmente oferecia-se para me levar para o escritório para tomar uma água, um chá, etc. Agradeci e disse-lhe que estava bem e andei com firmeza para o elevador que acabara de chegar ao andar. Bem? Coisa nenhuma! Estava sentindo uma dor terrível nas nádegas, mas não desci da minha clássica postura. Minha linda bolsinha de taquara, em moda na época, ficara toda torta e eu fiquei quase um mês sem poder sentar firme.

No dia seguinte o Cônsul me enviou flores, junto com a aprovação do contrato e eu ganhei um aumento de salário e muito elogios.

Lucilia Cavalcanti
Enviado por Lucilia Cavalcanti em 05/10/2009
Código do texto: T1848461
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