Tanto Frio

Acasalaram-se novamente, e não se sabe se turbulenta ou calmamente, mas tornaram-se elo e voltaram-se em duas voltas abrindo a porta sem ebulições confusas, deambulações malditas de um caminho perdido, simplesmente obraram e fizeram ranger as dobradiças ao caminho livre. Outra vez a maldita casa donde não partira, mantinha-se novamente, como outrora num passo exposto sobre o piano emoldurado nas paredes desta casa que nunca foi tua, usurpas ao uso sazonal num dia de outro tempo e passas o umbral e alcanças o tapete corrido, carcomido, velho, empoeirado como tuas veias em pó e regressas desta nocturna passeata urbana em que vendes donativa aos coágulos de teus olhos profundos e negros de estocadas de prazer e luxúria e vício. Outro passo sem luz aos pés da escada que tanto amas-te e fostes amada e tão violada fostes, onde pariste um feto novo em convulsões de morte, e morte colheste desse fruto teu desfeito. Por quê de joelhos acaricias as asas desses pequenos demónios angelicos de lembranças? E dói teu ventre, novamente, a menina pueril ao colo senil do amante amado desconhecido, a dor que sentiste naquele degrau que não este, mas como este comes-tes e desconhecias a dor que jamais perdoarias. Tua boneca de pano e cera fodida para todo o sempre e sempre, amém, e te puseram na rua desta casa que não fora esta em que aprecias as escadas que tentas subir. Tão tenra idade e não sabes que serás levada e usada, abusada e novamente fodida, até não seres mais que mais uma inútil a procura dum pequeno ponto de merda num texto analfabeto que te contaram inutilmente a passear pela noite num centro qualquer. Como aquele barbado que odeias por serem barbas as tuas lembranças e escadas a tua cruz bárbara, urbana, no frio da rua, onde te enfiaram aquele fumo pelo cu acima que te acalmava o pânico com um alegre frio na espinha em torpor, num entrever desfocado e bêbado do ópio cavalar do primeiro vício. Fugir, fugir, fugir sem se assegurar em correr em passo parvo onde culmine o acelerar calado de tua mente em fuga. Amas-te e foste fodida e teu amor consumiu-te, consome-te e dedicas tua miséria em ser miserável por ele, por isso, e entregas-te aos que te mandam entregar-te e entregas teu tudo à teu amado aos pés desta escada em que vislumbras o reflexo daquela luz acesa em casa escura lá em cima, no quarto. Aqueles que foram os teus perderam-te quando lançaram-te naquele quarto escuro sozinha, iluminado por sombras mortas de mofo na parede enegrecida, húmida em cal da boca tua em lágrimas. Levante-te e sente o criptar de teus pés ao subir degraus sem tempo e apaga a luz de tuas castanhas íris, dilatadas pupilas infantes envelhecidas.

Quem são estas fotografias enfiadas no patamar em que dou as costas? Antigos desconhecidos em que convidei nomes viandantes à partilhar minhas fantasias, minhas façanhas. Decido caminhar altivamente levitando minha alma sem peso, e dispo os sapatos aos pés destas testemunhas descalças de minha pena. Este transpirar imunda-me com a necessidade vil de mim mesma, e reviras a pequena rubra bolsa com destra perdição e desencontras a dignidade num pequeno embrulho, tua prenda mais porca que te acalma e mais te sofre. Agora um patamar desarrumado numa vela e arfas com a mente sob os retratos desconhecidos de olhos fechados num desparaiso. Iluminuras brilhantes, ofuscantes néons estroboscópicos num amado limpo e arranjado em carícias que não as mesmas violências, mas pouco dura a consciência e torna-te real teu ilusório inferno. Levanta-te, levanto-me, toma teu repasso, subo, resguarda aquele que é luz acesa na primeira outra porta, dói tanto, vomita tua bílis sobre tuas pernas com tuas mãos de gatas nos dois degraus acima de teus dois joelhos esfolados de mais tanto trabalho. Mais tempo agora, menos caminho aos céus duma luz bruxuleante dum quarto anónimo de mim. Ainda a cítrica fruta em meus pés, anda, e abro outra porta e revejo a última vela e a tenra cama fétida, impudica, féretro de amores e consolos. Uma blusa, uma saia, meias, uma cueca leve que se despe novamente, mecanicamente nua sem sabor, banhada em sémen, saliva e merda duma vida comum, vulgar e mundana, um cotidiano desmulher. Nua ainda, tenho frio, esqueces-te do temporal que te encharca e acendes um cigarro roubado a meio como tu no que resta daquela vela. Desconheces o vento que acompanha esse interminável caminho de dois passos ao esmalte escaldante do túmulo de teu banho. Apenas uma água hoje aberta, tenho tanto frio, numa invernal enxurrada egoísta que se ocupará dessa podridão que é teu corpo perfurado mil vezes por ferros e falos infectos. Mergulha-te, afunda teu labor, teu sexo e teus cabelos, teus pelos e depila-te, acaricia-te com essa lâmina que te fere. O que faço? Respira esse hálito que vês no reflexo de tua feiura nas águas. Aborta-te nessa água tingida de ti em que adormeces sem lágrimas como um feto que fostes, que perdestes, e não vê quem pelo vento te acompanha. Tenho tanto frio...

Antonio Antunes
Enviado por Antonio Antunes em 30/06/2006
Reeditado em 30/06/2006
Código do texto: T185105